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Greve na aviação civil

Greve na aviação civil

São Paulo, 19 de dezembro de 2022, aeroporto de Congonhas, São Paulo, Brasil. Em meio ao período de férias escolares e junto ao início da semana de Natal, um dos aeroportos mais estratégicos do país tem as suas atividades, mais uma vez, interrompidas. Dessa vez, não por conta de um jato que bloqueou a sua pista principal, nem por chuvas que castigaram as suas pistas, mas sim pela realização de um movimento grevista; constitucionalmente garantido.

Como foi amplamente noticiado pela imprensa, a semana do dia 19 de dezembro de 2022 fora marcada pela realização de greves de pilotos e comissários que ocorreram diariamente entre o período compreendido entre às 6h e 8h.

 Essas greves atingiram não somente o aeroporto de Congonhas (SP), mas também os principais aeroportos que servem às cidades do Rio de Janeiro, Campinas, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte e Fortaleza, demandando esforço extraordinário das companhias aéreas para reacomodar e atender a todos os seus passageiros que, em plena alta temporada, tiveram as suas viagens interrompidas e atrasadas.

Mas não é só! As companhias aéreas também enfrentaram um soberano desafio já que, em “horário nobre”, foram aleatoriamente surpreendidas por voos que atrasaram e deixaram de ser realizados, forçando suas equipes de planejamento a lidarem com um enorme efeito cascata, afinal, uma aeronave que não decola do ponto A, não chega ao ponto B, e ao não chegar ao ponto B, não voa até o ponto C e assim por diante.

É inegável que as companhias aéreas têm responsabilidade com seus passageiros, mas essa responsabilidade deve ficar adstrita às suas condutas ou omissões e não a eventos incontroláveis. As ações de uma companhia aérea são pressupostos de responsabilização, as quais devem ser avaliadas sobre o prisma da previsibilidade, inevitabilidade e mitigação.

Punir as empresas aéreas por acontecimentos que elas não possuem ingerência alguma, além de nocivo à recuperação de uma atividade essencial, já afetada em seu coração pela Covid-19, demonstra também que a aplicação de normas protetivas de direito do consumidor de maneira indistinta traz prejuízos ao país, levando investidores estrangeiros a repensarem se o Brasil é o país ideal para se investir.

O Código de Defesa do Consumidor revalidou as previsões constitucionais e a necessidade de um mercado aberto pautado na livre iniciativa, com amplo espaço para empreender e ofertar produtos e serviços com melhores preços e qualidades.

O mesmo diploma legal previu a responsabilização dos fornecedores de forma objetiva, onde não se apura a intenção da conduta ou omissão, mas apenas sua ocorrência. Significa dizer que a partir da ocorrência do fato e existindo a conexão deste com o dano, configura-se a responsabilidade dos fornecedores; no caso, das companhias aéreas.

De volta ao cenário grevista atual,  remetemos à intenção do legislador quando da edição da Lei 14.034/2020, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica, especificamente em seu artigo 256, isentando a responsabilidade do transportador sobre atrasos e cancelamentos de voo diante de ocorrências caracterizadas como caso fortuito ou força maior.

Neste  cenário e diante de tantas afetações, paira a dúvida: Seriam as companhias aéreas responsáveis perante seus consumidores pela suspensão de suas operações ou poderiam tais eventos serem considerados casos fortuitos externos?

A expressão caso fortuito externo, sem nenhum tecnicismo exagerado, pode ser conceituada como ocorrência de eventos imprevisíveis e inevitáveis. Opostamente, os casos fortuitos internos, que não isentam a responsabilidade dos prestadores de serviços, seriam teoricamente previsíveis ou evitáveis.

Pretendemos neste artigo chamar a atenção para a inevitabilidade das consequências deste movimento, pois outros fatores associam-se à situação, tais como festividades natalinas, viagens de férias, época de chuvas e legislação trabalhista.

Comentando rapidamente e exemplificando um cenário real, não parece crível considerar a ocorrência de uma greve de pilotos e comissários como caso fortuito interno, ou seja, previsível, evitável e intrinsecamente ligado à aviação civil, se somado ao período da paralisação  a ocorrência de fortes chuvas, as quais naturalmente já levariam ao cancelamento de diversos voos por questões de segurança.

Além das chuvas, a redução do contingente de pilotos e comissários desafia ainda mais as companhias aéreas que, por restrições impostas pela legislação trabalhista, não podem lançar mão de outras tripulações de voo, caso não sejam observadas as regras trabalhistas específicas do setor.

Por fim, o aumento de casos de Covid-19, que também afeta pilotos e comissários, termina por traçar um cenário de extrema dificuldade à aviação civil.

Nessa conjuntura, fica o questionamento: a ocorrência de uma greve em dezembro, juntamente com fortes chuvas, feriados nacionais e restrições sanitárias, além de limites legislativos impostos, deveria caracterizar caso fortuito interno? A resposta negativa nos parece óbvia, mas no Brasil a história é outra!

Escorados na lógica que basicamente coloca consumidores em patamares de hipossuficiência, conforme legislação consumerista, a tendência é a responsabilização desenfreada dos transportadores aéreos, sem que para tanto seja avaliado o contexto da situação.

Poucas são as decisões que reconhecem que eventos extraordinários e incontroláveis devem excluir a responsabilidade do transportador aéreo. Um desses pronunciamentos judiciais que merece destaque, foi proferido no julgamento da Apelação Cível 1128175-25.2019.8.26.0100[1], que afastou a responsabilidade de uma companhia aérea, reconhecendo que uma greve por si só deve ser reconhecida como caso fortuito externo.

prestação de serviços Transporte aéreo internacional – Incontroverso o cancelamento do voo que levaria os autores de Roma para Atenas, assim como indiscutível que o cancelamento decorreu de greve aeroviária na cidade de Roma Greve de funcionários aeroviários que configura fortuito externo

 Hipótese, ademais, em que os autores embarcaram em outro voo, tendo chegado ao seu destino duas horas depois do horário programado 

 Cancelamento do voo, sem demonstração de que tenha resultado qualquer consequência mais gravosa na vida do passageiro, que representa dissabor ou aborrecimento não passível de indenização em verba de dano moral Dano moral decorrente de atraso de voo que não é puro, conforme entendimento recente do STJ Indenização indevida Reconhecida a ausência de responsabilidade da ré pelo evento danoso Sentença reformada nesse ponto.

De toda forma e sabendo desta fragilidade pela divisão de entendimentos judiciais, é certo que os chamados aplicativos abutres (Law Techs) enxergam a possibilidade de lucrar, promovendo através de publicidade ostensiva em redes sociais e outros veículos de comunicação a captação de consumidores que tiveram suas viagens frustradas pelos acontecimentos narrados.

A atuação destas Law Techs têm causado grande preocupação na comunidade jurídica, seja por órgãos de classe como a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, seja pelo próprio Poder Judiciário. Um exemplo recente da preocupação sobre o tema foi a realização do  1º seminário sobre “Dados e Litigância: experiências do Judiciário brasileiro no monitoramento da litigância predatória”, onde se discutiu a importância do monitoramento destas ações.

No seminário, enfatizou-se a má-fé na conduta de profissionais que movimentam ações infundadas, as quais chegam a ser propostas em Juízos diversos, na busca de melhores indenizações para seu pleito. Nessa esteira, é importante mencionar as palavras do Juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Dr. João Thiago de França Guerra, que afirma:

“Existe uma máquina de exploração econômica do processo, da letargia e da morosidade do processo. É um fenômeno que precisa ser estudado e contemporizado para que o acesso à Justiça daquele que realmente precisa e busca a tutela do seu direito não seja inviabilizado por essa exploração econômica do serviço judiciário”[2]

A preocupação em combater a prática de advocacia predatória não restringe-se à morosidade no trâmite de processos, mas sim pelo efeito na vida dos próprios consumidores. Isso porque, os consumidores são iludidos pela promessa de indenizações certas e pré-fixadas, quando na verdade acabam por alimentar uma indústria que contribui negativamente à melhora de produtos e serviços.

Os efeitos, por mais silenciosos e discretos que possam parecer, fomentam uma prática antiproducente e prejudicial a uma atividade reconhecidamente essencial, em outras palavras, mesmo voando, as companhias aéreas remam contra a maré.


[1] Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível 1128175-25.2019.8.26.0100; Relator José Marcos Marrone. São Paulo. 27.10.2021.

[2] Conselho Nacional de Justiça. Tribunais apresentam boas práticas para combater litigância predatória. 1.12.2022.

 Acessado em 20.12.2022.


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