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O consumidor, a justiça e as práticas ESG na aviação civil

O consumidor, a justiça e as práticas ESG na aviação civil

A preocupação com a defesa do consumidor data de muito tempo, sendo a década de 1990 marcada pela promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), hoje com mais de 30 anos de vigência e considerado o diploma legal mais importante na regulação da circulação de bens e serviços que tenham como destinatários finais pessoas físicas ou jurídicas.

Esse conceito do artigo 2º (“consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”) é também um divisor de águas nas relações comerciais, pois a partir desta categorização legal, quaisquer disputas entre fornecedores e consumidores passaram a ser amparadas não mais pela legislação civil, mas por lei especial e sob a ótica da hipossuficiência dos consumidores.

E esta hipossuficiência não está ligada isoladamente à capacidade econômico-financeira do consumidor, mas sim à capacidade e possibilidade processual de produzir provas na defesa de seus direitos em juízo.

Este ponto é de importante menção para atingirmos o objetivo deste artigo, que é a conscientização dos malefícios da alta judicialização, pois a inversão do ônus probatório deve ser analisada sob a ótica processual e não da pessoa em absoluto. Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

“Nos termos do entendimento jurisprudencial desta Corte, a inversão do ônus da prova fica a critério do juiz, conforme apreciação dos aspectos de verossimilhança da alegação do consumidor e de sua hipossuficiência, conceitos intrinsecamente ligados ao conjunto fático-probatório dos autos delineado nas instâncias ordinárias, cujo reexame é vedado em recurso especial, em função da aplicação da Súmula 7 do STJ”.[1]

E esta hipossuficiência é justificativa para propositura de ações judiciais contra empresas? A resposta é não, pois antes disso a Constituição Federal, através do poder constituinte, já garantia a defesa dos consumidores junto ao Poder Judiciário.

Os consumidores são protegidos pelo Estado, na forma da lei, sendo este direito inviolável, garantido por cláusulas pétreas, como desejou o constituinte de 1988.[2] O consumidor antes de adquirir um bem ou um serviço, manifesta um desejo precedente de consumir, almejando qualidade, preço justo e agilidade. Caso este desejo seja frustrado de alguma forma, nasce o interesse processual para reparação de prejuízos, sejam eles materiais ou morais.

Contudo, distribuir uma ação judicial para julgamento do Poder Judiciário em matéria de relações de consumo significa aguardar um longo tempo para seu desfecho. Essa afirmação é comprovada pela imagem abaixo, extraída do Relatório Analítico Propositivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que mostra o expressivo número de processos.[3]

Qualquer órgão, seja privado ou público, possui um limite em sua estrutura, pois são formados por pessoas, como servidores, juízes, promotores e outros auxiliares da justiça, como no caso do Poder Judiciário, mesmo que a tecnologia contribua cada vez mais para esta prestação jurisdicional do Estado.

Acrescentamos os milhões de contratos de consumo firmados diariamente, principalmente pelo fato que desde a década de 1990, mesma época da promulgação do Código do Consumidor, o ecommerce surge e ganha cada vez mais espaço no mercado empresarial, seja pela necessidade social, seja pelo surgimento de startups financiadas por investidores, muitas vezes estrangeiros, as quais inovam a cada dia e ofertam diversos novos serviços.

A consequência natural foi o aumento surreal de ações judiciais, as quais atingiram níveis insustentáveis, passando a ser um tema preocupante, que atinge a sociedade, sobretudo na continuidade e acessibilidade dos serviços na aviação civil.

Segundo dados da Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), conforme mencionado pelo seu diretor de Compliance, Antonio Augusto, que “de acordo com dados da Iata, de cada 100 voos em solo nacional são registrados 8 processos judiciais contra as companhias aéreas. Nos Estados Unidos, o número é de apenas 0,01”.[4]

Mas qual a relação entre aviação civil, sociedade e sustentabilidade da justiça?

O movimento ESG (Environmental, Social and Governance) – em português Ambiental, Social e Governança – refere-se às práticas das entidades voltadas a serem ambientalmente mais sustentáveis, socialmente mais responsáveis e administradas de modo a reduzirem suas externalidades negativas. É uma tendência de grande parte dos setores da sociedade e do Poder Judiciário, mas talvez ainda não totalmente percebida pelos consumidores.

A busca pela sustentabilidade passou a ser foco das empresas, como a Latam, um dos maiores grupos da aviação civil mundial, que aposta em uma justiça sustentável, que permita que seus clientes sejam amparados de acordo com as normas de proteção de direito do consumidor, mas que não se autoprejudiquem e sobretudo tragam malefícios para continuidade da atividade empresarial.

Esse foi um dos assuntos do Fórum Panrotas 2023, que em sua 20ª edição debateu, dentre diversos temas, a excessiva judicialização e as altas cifras envolvidas nesses processos judiciais e a consequente prejudicialidade ao negócio e aos consumidores.[5]

Garantir uma justiça mais sustentável estende-se à sociedade e essa é uma das preocupações do Poder Judiciário e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que através da Coordenação Nacional de Fiscalização da Atividade Profissional da Advocacia combatem a advocacia predatória praticada por lawtechs, fomentadoras do litígio em massa, as quais visam única e exclusivamente benefícios próprios e não a solução dos problemas de seus “clientes”.

Essa prática, também conhecida como civic washing[6], nada mais é que a camuflagem de serviços jurídicos através do discurso protecionista dos “hipossuficientes” consumidores, que a bem da verdade abarrotam o Poder Judiciário e prejudicam as relações de consumo como um todo.

Comprometem as relações, pois os reflexos são sentidos no bolso pelos consumidores, que acabam por pagar altos preços pelos produtos e serviços, vez que processos judiciais custam bilhões de reais anualmente e encarecem os custos de produção das empresas.

Na aviação civil, um dos setores mais vitimados, as civic techs (lawtechs), também conhecidas como “aplicativos abutres”, são responsáveis pela propositura de milhares de ações judiciais, as quais pleiteiam na grande maioria das vezes indenizações por danos morais, mas descartam veemente recorrer previamente às soluções alternativas de resolução de conflitos, como Câmaras de Mediação Privada, canais fornecidos pelas empresas e a plataforma pública e gratuita consumidor.gov.

Os dados nos levam a calcular mentalmente a prejudicialidade social, mas precisam ainda servir como informação para a sociedade, para que todos busquem uma justiça célere e sustentável.

A hipossuficiência precisa ser avaliada processualmente e pelo real interesse processual dos consumidores e não os meramente econômicos.

Nesta linha, a ODS 16 (Paz, Justiça e instituições eficazes)[7] prega o fortalecimento de instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis, bem como a igualdade de acesso à justiça para todos.

Um sistema judiciário inflado por pleitos que poderiam ser resolvidos por outras vias mais eficientes, por óbvio, falha na concretização desse Objetivo de Desenvolvimento Sustentável. A responsabilidade pelo atingimento desse propósito recai sobre todos os participantes desse sistema, inclusive sobre quem o acessa.

Esta pequena contribuição para os leitores busca a conscientização sobre os malefícios da alta judicialização, para que busquemos tornar o Judiciário sustentável e também tornar as pessoas consumidores sustentáveis.



[1] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Acórdão. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.429.160. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. 27.05.2019.

[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

[3] Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa os maiores litigantes em ações consumeristas: mapeamento e proposições. Poder Judiciário. 2018.

[4] Abear (Associação Brasileira de Empresas Aéreas). Abear e Associação dos Magistrados Brasileiros firmam convênio para analisar a judicialização no setor aéreo. https://www.abear.com.br/imprensa/agencia-abear/noticias/abear-e-associacao-dos-magistrados-brasileiros-firmam-convenio-para-analisar-a-judicializacao-no-setor-aereo/#:~:text=%E2%80%9CDe%20acordo%20com%20dados%20da,judiciais%20contra%20as%20companhias%20a%C3%A9reas. 01.12.2022. Acessado em 01.03.2022.

[5] PANROTAS. Fórum Panrotas. https://www.panrotas.com.br/forum-panrotas. 7.3.2023 e 8.3.2023. Acessado em 12.3.2023.

[6] Lee Brock Camargo Advogados. https://lbca.com.br/cuidados-com-o-civicwashing/

[7] ODS-16 – Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16


JAYME BARBOSA LIMA NETTO – Mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getulio Vargas. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogado e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados

RICARDO FREITAS SILVEIRA – Mestre e doutorando em Direito pelo IDP. Especialista em Organizações Sustentáveis pela Cambridge University. Professor em cursos de pós-graduação e sócio da LBCA

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