Ao adquirir um automóvel, é importante que sejam observados os prazos concedidos pelas montadoras para s revisões obrigatórias — prazos estes que podem variar de uma para outra — para que não seja perdida a garantia do veículo.
Deve-se esclarecer que as revisões obrigatórias são necessárias, pois além de garantir a segurança dos passageiros daquele automóvel, também previnem problemas que possam surgir em razão da falta de manutenção, principalmente porque muitos componentes sofrem desgastes em razão do uso e devem ser trocados.
Ressalvadas as particularidades de cada fabricante, no geral, serão analisados os pneus, sistema elétrico, motor, itens de segurança, freios, óleos e lubrificantes, garantindo maior segurança, economia e evitando multas de trânsito (por pneu careca, lanterna queimada etc.) [1].
Ocorre que, muitas pessoas acabam deixando de realizar as revisões obrigatórias recomendadas pela fabricante de automóveis, e, caso o veículo comece a apresentar problemas, ao encaminharem para a concessionária para que seja analisado, podem se deparar com a negativa da aplicação da garantia, sob a justificativa de inobservância das revisões obrigatórias.
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Diante da negativa, o consumidor se vê obrigado a arcar com o valor do orçamento apresentado para realizar o reparo do seu veículo, entretanto, alguns consumidores não concordam com tal ônus e acabam ajuizando ação, visando à obtenção de uma tutela jurisdicional determinando o reparo imediato do carro.
Ocorre que tal pedido, geralmente, não deve prosperar, uma vez que, quando o proprietário do automóvel não observa os prazos de revisões recomendados pela fabricante e, consequentemente, o veículo apresenta problemas; é patente a ocorrência da excludente de responsabilidade civil prevista no artigo 12, §3º, III, do Código de Defesa do Consumidor [2].
Nas lições da professora Claudia Lima Marques, a referida excludente prevista no artigo 12, §3º, III, exonera os fornecedores da responsabilidade civil, mesmo existindo no caso um defeito de produto, não há nexo causal entre o defeito e o evento danoso, já que este pode estar associado à não observância da manutenção periódica [3].
Nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo manter a improcedência de uma ação, em razão da ausência de realização das revisões obrigatórias no veículo que veio a apresentar problemas após dois anos de uso e com mais de 50 mil quilômetros rodados (TJ-SP – AC: 10036919420208260554 SP 1003691-94.2020.8.26.0554, relator: Cristina Zucchi, Data de Julgamento: 26/02/2021, 34ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/02/2021).
Em outro caso, o TJ-SP manteve a improcedência da ação, sob fundamento da ausência das revisões obrigatórias, o que ensejou a perda da garantia concedida pela fábrica, vez que garantia estava condicionada a realização das revisões, dentro do prazo ou da quilometragem, estipuladas no manual do proprietário (TJ-SP – AC: 00003651120118260506 SP 0000365-11.2011.8.26.0506, Relator: Antonio Nascimento, Data de Julgamento: 27/07/2017, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2017).
Por fim, uma decisão recente do Juizado Especial Cível de São Paulo, Processo nº 0005527-67.2023.8.26.0602, na qual o magistrado entendeu por julgar improcedente a demanda sob o fundamento de ausência das revisões obrigatórias e culpa exclusiva da consumidora. O magistrado foi categórico ao afirmar que a autora tinha ciência de que deveria encaminhar o automóvel para revisão uma vez por ano ou a cada 10 mil quilômetros rodados, porém não o fez da forma que deveria.
O veículo apresentou problemas quando contava com 70 mil quilômetros rodados, ou seja, quando deveria ter sido apresentado na concessionária requerida pelo menos umas sete vezes, sendo que compareceu apenas uma vez. Prossegue destacando que sequer a autora comprovou ter encaminhado para oficinas particulares, o que demonstra negligência com seu automóvel.
Mas a grande questão é: E quando o magistrado não entende dessa forma? E quando o juiz entende que o problema decorre de vício de fabricação e não guarda relação com a realização das manutenções preventivas?
Nesse caso, há de ser observado o previsto nos Artigos 944 “caput” e parágrafo único e 945 do Código Civil. Senão, vejamos. [4]
O professor Claudio Luiz Bueno de Godoy explica que, com relação ao parágrafo único do Artigo 944: “o princípio da indiferença de grau de culpa, estabelecido desde a Lei Inquilina, agora passa a encontrar mitigação. Excepcionalmente, a indenização poderá ser reduzida por consequência de uma conduta havida com grau mínimo de culpa, todavia desproporcional ao prejuízo por ela provocado” [5].
Em continuidade, no que diz respeito ao artigo 945, o professor prossegue afirmando que: “No caso, tem-se o evento danoso, decorrente da conduta culposa de ambas as partes nele envolvidas. Lesante e lesado o são reciprocamente, de modo que as indenizações por eles havidas, deverão ser fixadas com a consideração do grau de culpa em que concorreram para o fato” [6].
Conforme discorrido acima, as revisões obrigatórias têm o objetivo de realizar manutenções necessárias no automóvel, durante o período determinado por cada fabricante, para trazer maior segurança e conforto para os passageiros e evitar desgastes prematuros que possam vir a afetar o veículo.
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Importante destacar que os números divulgados pela Polícia Rodoviária Federal, apontam que, de janeiro até agosto de 2022, tivemos 1.700 acidentes de trânsito, com 36 mortes, e esses acidentes foram causados por veículos que estavam com algum problema mecânico. Ainda, fazendo um paralelo com o ano de 2021, foram registrados 1800 acidentes, com 34 óbitos [7].
Em continuidade, a matéria destaca que, em uma pesquisa realizada da Atlas Décadas de Ações para Segurança Viária, entre 2011 e 2020, foram mais de 59 mil acidentes de trânsito ocasionados por problemas mecânicos no veículo, deste número, foram 1.399 mortes [8].
Quando o consumidor adquire um automóvel, ele recebe o manual do proprietário, nele consta todos os prazos para realização das revisões — que deverão ser realizadas em uma concessionária autorizada da fabricante, haja vista elas possuírem know-how e expertise para tanto — porém, quando ele deixa de realizar tais revisões, está concorrendo culposamente caso surja algum problema no automóvel, ou seja , ele não está tomando medidas para mitigar o próprio dano.
Isso quer dizer que, ainda que se entenda pela procedência de uma ação mesmo diante da ausência de revisões obrigatórias no veículo, há de ser considerado o Princípio “Duty Mitigate Loss”.
Esse princípio, foi muito bem explicado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento de um recurso especial, onde destaca que, tal princípio conduz à ideia de dever, fundamentado na boa-fé objetiva, na mitigação, pelo credor, dos seus próprios prejuízos e adotando medidas razoáveis para diminuir as suas perdas.
Ainda, prosseguiu afirmando que sob o aspecto de abuso de direito, o consumidor que viola os deveres anexos ao contrato, como lealdade, confiança ou cooperação), vindo a agravar a situação da outra parte, deve ser instado a mitigar suas próprias perdas. (STJ – REsp: 1201672 MS 2010/0133286-6, relator: ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Data de Julgamento: 21/11/2017, T4 — QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/11/2017).
Nesse sentido, apenas à título de exemplo da sua aplicação, sem guardar qualquer relação com o objeto em questão, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao aplicar a teoria do “Duty Mitigate Loss”, em razão da desídia do autor que acabou por culminar no agravamento indevido do dano, ocorrendo a violação da boa-fé objetiva (TJ-SP – AC: 10294086620218260007 SP 1029408-66.2021.8.26.0007.
relator: Almeida Sampaio, Data de Julgamento: 18/08/2022, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/08/2022).
Ora, quando o proprietário deixa de realizar as revisões, ele acaba por violar os deveres anexos ao contrato de Compra e Venda, inclusive o da boa-fé objetiva — sem contar a desídia e negligência com seu automóvel — o que acaba por agravar a situação do veículo — caso este venha a apresentar problemas.
Neste cenário, nota-se que, quando o consumidor não mitiga o próprio o risco e ainda assim exige que o fornecedor lhe atenda sem ônus, ele ultrapassa a linha do Direito e acaba incorrendo no abuso deste.
Devendo o Judiciário coibir tal prática, assegurando que o Direito evocado pelo consumidor não caracterize abuso em detrimento ao fornecedor — pois neste caso o ato ilícito parte do consumidor — devendo ser considerado o Princípio do “Duty Mitigate Loss” para fins de fixação de eventual indenização.
[1] https://arede.info/jornaldamanha/debates/480166/a-importancia-da-revisao-e-manutencao-preventiva-de-veiculos?d=1
[2] Artigo 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
- 3º O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
[3] MARQUES LIMA, Claudia; BENJAMIN HERMAN V, Antonio; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor.
[4] Artigo 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização
Artigo 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano
[5] GODOY LUIZ BUENO DE. Claudio; LOUREIRO EDUARDO, Francisco; JR. BDINE CHARAF, Hamid; AMORIM ROBERTO NEVES, José; FILHO BARBOSA FORTES, Marcelo; ANTONINI, Mauro; FILHO, PAULO DE CARVALHO, Milton; ROSENVALD, Nelson; DUARTE, Nestor. Código Civil Comentado.
[6] idem
[7] https://www.vrum.com.br/noticias/17-mil-acidentes-falta-manutencao-carro/
[8] idem
Marina Spagnolo Iliadis é advogada do Lee, Brock, Camargo Advogados, especialista em Direito do Consumidor, pós-graduada em Contratos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e possui curso de extensão em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).