Os avanços da tecnologia continuam a surpreender, trazendo consigo novas preocupações sobre a privacidade, especialmente em uma área tão pessoal quanto os dados provenientes do nosso cérebro. Em uma discussão hipotética, os dados dos nossos pensamentos, agora conhecidos como neurodados, poderiam ser capturados e utilizados para análises preditivas e de mercado.
Apesar de já compartilharmos muitas informações pessoais na internet, a necessidade de proteger os dados que emanam diretamente de nossas mentes levanta questões éticas urgentes.
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Recentemente, observou-se um aumento nas regulamentações sobre privacidade de dados pessoais, abarcando desde impressões digitais até reconhecimento facial. Ainda assim, as ondas cerebrais representam a próxima fronteira dos dados pessoais e continuam a ser um tema de debate acalorado em várias jurisdições.
Na Espanha, França e pela União Europeia através da GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados), até em organizações internacionais como a ONU e no Brasil, medidas estão sendo implementadas para proteger essas informações como dados pessoais confidenciais e impedir a descodificação neural não autorizada, assegurando, assim, a privacidade mental.
Nos Estados Unidos, o estado do Colorado1 destacou-se ao expressar preocupações significativas sobre neurotecnologias que podem “monitorar, decodificar e manipular a atividade cerebral”. A legislação daquele estado norte-americano requer que as empresas ofereçam aos indivíduos a possibilidade de corrigir ou excluir seus dados neurais ou optar por não compartilhá-los.
A interação entre a neurociência e a Inteligência Artificial (IA) está se expandindo rapidamente, aumentando tanto a diversidade de usos quanto os desafios e riscos potenciais. Isso tem acentuado a necessidade de regulamentar a intimidade subjetiva da mente e o reconhecimento dos chamados neurodireitos.
Em resposta, muitos legisladores e pesquisadores defendem que a proteção dos neurodados deve ir além das regulamentações nacionais, necessitando da cobertura de tratados internacionais de direitos humanos. Essa necessidade surge pelo risco de manipulação de características sensíveis, como etnia, crenças religiosas ou orientações políticas, que poderiam resultar em discriminações e comprometer a singularidade do indivíduo e suas escolhas.
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Nessa linha, o Chile foi o primeiro país do mundo – e único até agora – a dispor sobre a neuroproteção digital em sua Constituição, determinando a regulação dos avanços da neurotecnologia.
No Brasil, a Emenda Constitucional 115, de 20202, alterou o capítulo do artigo 5º da Constituição, inserindo a proteção de dados como um direito fundamental do povo brasileiro, equiparável ao direito à vida, à liberdade e ao acesso à justiça.
Especificamente quanto aos neurodados, está em trâmite o Projeto de Emenda Constitucional n. 29/2023 para inclusão do inciso LXXX no artigo 5º da CRFB, no intuito de assegurar a integridade mental e a transparência algorítmica, ante os avanços da neurociência e da neurotecnologia.
Esse debate sobre os neurodados não está tão distante de nossa realidade quanto podemos imaginar. Técnicas como a ressonância magnética funcional e eletroencefalografia já são comumente utilizadas para coletar dados sobre atividades eletromagnéticas do cérebro.
A indústria da neurotecnologia, prevista para faturar aproximadamente US$ 15 milhões este ano, é impulsionada por inovações significativas, como as da empresa Neuralink, que desenvolveu uma interface cérebro-computador implantando um chip em um cérebro humano e da Universidade de Tecnologia de Sydney, que criou um sistema para decodificar pensamentos e transformá-los em texto.
Ainda no contexto da lei de privacidade de dados pessoais do Colorado, a proteção estende-se aos dados neurais gerados pelo cérebro, medula espinhal e rede de nervos que transmitem mensagens pelo corpo. Isso busca abrigar as tecnologias cerebrais no âmbito do consumidor, uma área em que os dados relacionados à saúde já possuem legislação específica. As empresas, portanto, estão proibidas de coletar, processar e vender esses dados sensíveis.
A fundação Neuro Rights3, uma organização sem fins lucrativos, divulgou uma pesquisa com 30 empresas de neurotecnologia de consumo sobre políticas de privacidade, revelando resultados alarmantes. Apenas uma companhia limitava o acesso aos dados neurais de forma eficaz e quase dois terços, em diferentes circunstâncias, compartilhavam esses dados com terceiros. Pior ainda, duas indicaram que já comercializavam neurodados, sublinhando o potencial comercial dessas informações.
Portanto, enquanto a neurotecnologia promete grandes avanços, ela também traz riscos significativos que exigem uma regulamentação cuidadosa para proteger a privacidade mais fundamental – a privacidade de nossos pensamentos, nossa neuroprivacidade.
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.