Antes da decisão tomada pelo Supremo, a LGPD poderia ser utilizada como fundamento para se apagar da história dados pessoais, inviabilizando obras literárias e históricas
A sociedade contemporânea tem como característica amplo acesso a dados e informações. A internet é o principal vetor de compartilhamento instantâneo de dados, sem respeito às fronteiras geográficas e globais. Para se ter ideia, só em 2021, o tráfego global de dados móveis deve chegar a 49 exabytes por mês. A internet, nesse contexto, é um elemento que transcende o usuário à informação, gerando conexões, criando uma base gigantesca de dados.
Seria ingênuo, portanto, acreditar que essa transformação da realidade provocada pelo fluxo maciço de informações não traria consequências à privacidade, ainda mais com a chegada da Lei Geral de Proteção de Dados. A LGPD, em vigor desde agosto de 2020, é um marco histórico legislativo à proteção da intimidade. Ela confere maior transparência e controle sobre a coleta e tratamento de dados analógicos e digitais. Positivamente, a legislação proporcionou ao Brasil a entrada no rol de países que protegem os dados pessoais e sensíveis de seus cidadãos.
Via de regra, os artigos 4º e 7º da Lei nº 13.709, de 2018, estabelecem as hipóteses em que a legislação não se aplica ao tratamento de dados pessoais e as circunstâncias em que o tratamento de dados poderá ser realizado.
Dentre elas, vale destacar os trabalhos jornalísticos, artísticos e acadêmicos (artigo 4º, II e III), dados
pessoais cujo acesso é público (parágrafo 3º do artigo 7º), realização de estudos por órgão de pesquisa (artigo 7º, IV) e, para as situações não previstas, quando houver legítimo interesse (artigo 10). O artigo 18, VI, da LGPD, por seu turno, prevê que o titular de dados pessoais, tem o direito à “eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no artigo 16 desta
Lei.”
Em outras palavras, a Lei Geral de Proteção de Dados indica quais as hipóteses em que se admite a coleta e o tratamento de dados, e as situações em que os dados poderão ser anonimizados ou eliminados.
Nessa perspectiva, em razão de o titular de um dado pessoal ter a prerrogativa de solicitar, dentro das hipóteses legais, o bloqueio, a eliminação ou anonimização de dados pessoais, surgiu a preocupação de que a lei pudesse, em certa medida, dar azo a pedidos de anonimização de dados sobre fatos históricos relevantes, em especial no que tange à previsão contida pelo artigo 11, II, “c” e 18, VI, da LGPD.
Ainda que a lei excepcione trabalhos jornalísticos, artísticos, acadêmicos, estudos de órgão de pesquisa e situações em que esteja presente o “legítimo interesse”, não seria possível descartar, ainda que por excesso de zelo, a possibilidade de a legislação ser eventualmente utilizada como justificativa para se apagar da história dados pessoais importantíssimos, inviabilizando narrativas históricas, em razão da supressão de nomes ou dados, cujo elemento principal seja indissociável dos fatos.
Mesmo que sob outro fundamento, a tentativa de apagar a exposição do assassinato de Aída Curi, por exemplo, no programa “Linha Direta Justiça”, da TV Globo, discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no recurso extraordinário 1.010.606.
Embora a LGPD jamais tenha tratado sobre “direito ao esquecimento”, antes da decisão tomada pela Suprema Corte, a lei poderia ser utilizada como fundamento para se apagar da história dados pessoais, inviabilizando obras literárias e históricas, em razão da supressão de nomes e dados. Já imaginou parte da história brasileira
ser contada sem seus personagens?
O direito ao esquecimento objetivava limitar certas passagens do passado da vida de uma pessoa em razão do decurso do tempo. O esquecimento traz como consequência o apagamento de informações. A LGPD, por sua vez, tem como objetivo assegurar o respeito a direitos e liberdades fundamentais, notadamente da privacidade. Neste particular, ainda que o direito ao esquecimento e LGPD não tenham vinculação formal e expressa, a incompatibilidade constitucional do primeiro ao sistema jurídico brasileiro restringiu definitivamente a possibilidade de supressão de dados pessoais de obras históricas, o que fortalece a construção de uma memória coletiva, afastando o individualismo e o obscurantismo.
Portanto, o reconhecimento pela Suprema Corte brasileira da incompatibilidade do instituto do chamado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico nacional, ainda que a LGPD jamais tenha abordado tal assunto, em certa medida, limitou a incidência da lei sobre o apagamento de dados, como nome e informações atreladas a fatos históricos, impedindo o apagamento de dados, ou mesmo o enviesamento da história por meio de recortes.
*Fabio Rivelli e Caio Miachon Tenório são advogados e sócios da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA)
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