O chargeback (cláusula de retenção de valores) é um mecanismo pelo qual o usuário (consumidor) pode efetuar contestação administrativa de determinada compra junto ao emissor do cartão e, nessa situação, o lojista (que figurará como terceiro recebedor de boa-fé) não receberá os recursos.
Tal cláusula, geralmente, é prevista de forma padronizada nos contratos de produtos e serviços de pagamento firmados entre empresas de meios de pagamentos (intermediadoras, credenciadoras de pagamentos ou administradoras de cartões) e lojistas (no formato online e e-commerce ou mesmo as tradicionais lojas físicas) contemplando hipóteses específicas¹ em que determinada transação (ou venda) realizada poderá não ser processada (ou ser cancelada) pela operadora que cede o sistema de pagamento.
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Contudo, os chargebacks se revelam uma grande preocupação nos meios de pagamentos e são complicados de lidar, considerando os desdobramentos inerentes, principalmente em situações em que há controvérsias envolvendo a abertura de processos internos relacionados ao e-commerce.
O modelo negocial do chargeback de fraude se revela um instrumento eficaz inserido em contratos empresariais como forma de evitar infortúnios e prejuízos decorrentes de fraudes praticadas por terceiros ocorridas em processo eletrônico de sistema de compras.
Do ponto de vista negocial, a cláusula chargeback deve ser usada com responsabilidade e somente em obrigações legítimas. O acionamento indevido desta cláusula pode trazer consequências negativas para o estabelecimento comercial, incluindo-se aplicações de multas e perda de privilégio de aceitação de cartões, além de outras condições comerciais por parte da administradora de cartões, por exemplo.
O alcance da cláusula chargeback leva em consideração que neste universo (o qual contempla o comércio eletrônico, que tem por característica essencial a maximização do alcance das vendas), tratam-se de controvérsias que se resumem em definir qual das partes (lojista físico, on-line ou um grande e-commerce versus a empresa operadora do sistema de pagamento) deverá responder pelos danos decorrentes do chargeback, promovido em razão do não reconhecimento de compra realizada pelo consumidor (terceiro).
Não havendo resolução extrajudicial após abertura de uma disputa interna travada entre o lojista e a operadora que presta serviços de intermediação de pagamentos, em linhas gerais, as demandas judiciais são promovidas pelos estabelecimentos comerciais que acionam a operadora de pagamentos requerendo, pela via indenizatória, seja essa última condenada a arcar com os chargebacks, isto é, com o repasse da totalidade dos valores relativos a operações canceladas pelos usuários (consumidores).
Nesse sentido, destacam-se alguns desses questionamentos envolvendo tal temática:
1) em situações de fraude praticadas por terceiros, de quem é a responsabilidade pela checagem de dados cadastrais do titular do cartão de crédito?
2) em operações fraudulentas ocorridas por meio de vendas on-line, de quem é a responsabilidade?
3) qual das partes desta relação contratual em análise deverá arcar com os chargebacks, isto é, com os valores relativos a operações canceladas pelos usuários?
4) cabe à operadora do sistema de pagamento assumir o risco do chargeback, já que seria algo inerente à sua atividade empresarial?
Aprofundando o tema sob o ponto de vista jurídico, há um tema importante a ser analisado: há (ou não) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para a resolução de determinado problema envolvendo o chargeback. Tal ponto se mostra importante porque tem reflexos diretos, tanto em questões probatórias (notadamente, se é possível ou não inverter o ônus probatório), como relacionado a abusividade (ou não) de cláusulas do contrato de intermediação ou gestão de pagamentos, objeto deste ensaio.
O sucesso (ou insucesso) de determinada demanda judicial questionando o chargeback, isto é, quem caberá arcar com os valores relativos a operações canceladas pelos usuários, está diretamente relacionado a tal aspecto (se o CDC é ou não aplicável à relação jurídica firmada entre um estabelecimento comercial e empresa que presta serviços de intermediação e gestão de pagamentos on-line).
Para ilustrar tal ponto, considera-se dois exemplos, pois, mesmo nas relações travadas entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, o CDC será aplicado para buscar o equilíbrio entre as partes.
Visando dar compreensão do primeiro exemplo, imagine-se que uma empresa, atuante no meio virtual de venda de ingressos para eventos artísticos e entretenimento (na qualidade de contratante) que contrata e passa a se utilizar dos serviços prestados por uma empresa (na qualidade de contratada), que fornece uma plataforma digital de intermediação de meio de pagamento para venda dos ingressos aos consumidores.
Neste exemplo, conclui-se que não se aplica o CDC, pois, a empresa contratante do serviço (que desempenha a atividade de venda de ingressos para eventos de entretenimento).
Ao contratar os serviços de intermediação de pagamentos, não se enquadra no conceito de consumidora, pois, os serviços que fornece ao consumidor se destinam ao desempenho de sua atividade econômica (não havendo também, por esse exemplo, determinada vulnerabilidade de parte dela, empresa de eventos, capaz de inserir a empresa contratante em uma situação de desvantagem em face da empresa contratada).
Para ilustrar o segundo exemplo, no qual é aplicável o Código de Defesa do Consumidor, destaca-se as relações envolvendo um estabelecimento comercial em que adquire produtos na condição de consumidor final. Por exemplo, compra de mobiliário corporativo, tais como, mesas, cadeiras, armários) cuja aquisição é realizada com o intuito de mobiliar o escritório.
Nestes casos envolvendo contratos empresariais de intermediação de pagamentos (e de gestão de pagamentos on-line), com previsão de cláusula chargeback, a incidência da legislação protetiva consumerista decorrerá sempre de uma análise que tem como pressuposto inicial a questão da vulnerabilidade da parte (artigo 4º, I, do CDC). De forma prática, tal análise e constatação é realizada com base em provas constantes em determinado processo, isto é, se houve (ou não) demonstração da vulnerabilidade de uma parte frente à outra.
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Em geral, ao receber negativa por parte das administradoras de cartões de repasse de pagamento nas operações realizadas, os estabelecimentos comerciais sustentam que o descumprimento da cláusula chargeback foi praticado exclusivamente pelas administradoras, por considerar que essas não tomaram as cautelas mínimas necessárias para as operações, sendo possível a retenção/estorno de valores, não havendo qualquer abusividade a esse título.
As administradoras, por sua vez, defendem que o não repasse dos valores gerados pelas transações se deram porque 1) os titulares (consumidores) dos respectivos cartões questionaram a transação, por ocorrência de fraude.
Negando ter participado do negócio em si (não reconhecendo a compra de determinado produto efetivada) ou mesmo sequer ter usufruído dos serviços contratados; 2) os representantes/prepostos dos estabelecimentos comerciais não atuam de forma correta quanto às normas de segurança do sistema.
Como se observa, as provas — ainda que produzidas somente por meio de documentos — são um tema importantíssimo para solucionar determinada demanda relacionada ao acionamento judicial da cláusula chargeback. A maioria das demandas judiciais são julgadas apenas pela análise de documentos produzidos pelas partes, dispensando-se a produção de outras provas (tais como, pericial ou testemunhal, por exemplo).
De acordo com os desdobramentos de cada relação contratual e seus reflexos, é possível às partes litigantes apresentarem documentos novos no curso da demanda até o momento da prolação da sentença, a teor do artigo 435 [2], do Código de Processo Civil, desde que observado o princípio do contraditório e em conformidade com a boa-fé processual (artigo 5º, Código de Processo Civil [3]).
Neste ponto, como se observa da análise da maioria das demandas submetidas ao Poder Judiciário, destaca-se um ponto extremamente importante: o ônus da prova acaba sempre recaindo às empresas de meios de pagamentos, pois, caberá sempre a essas a demonstração, no caso concreto, da regularidade na retenção dos valores (não repasse do valor retido ao lojista), comprovando que quem agiu de forma negligente, em relação às normas de segurança estabelecidas, foi o estabelecimento comercial.
A questão probatória é um tema dificultoso para as empresas de meios de pagamentos:
Em geral, a prova da fraude é realizada apenas por meio da apresentação de meros printsscreens extraídos de telas sistêmicas, situação que, aos olhos do julgador, revela-se insuficiente para comprovar com robustez a ocorrência (e detecção) da fraude (se praticada por terceiros infratores ou mesmo em situações em que o lojista figura como partícipe da fraude) a partir apenas das informações existentes nessas telas de sistemas internos que são apresentadas e juntadas em demandas judiciais.
Nesse cenário jurídico, deve-se considerar o entendimento firmado pela Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça, ao prever que: “as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias” [4].
Como se observa, o risco da atividade não pode ser transferido ao estabelecimento comercial que contrata tais serviços, pois, é da administradora de cartões o dever de garantir a segurança das transações por ela autorizadas, devendo assumir o risco inerente à referida atividade por ela desenvolvida (previsão, inclusive, do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil).
De outro lado, obviamente, tal responsabilização e ônus probatório podem ser afastados se a administradora comprovar que o estabelecimento/lojista não cumpriu com os procedimentos de segurança, agindo de forma negligente, em relação às normas de segurança.
Os chargebacks se revelam uma grande preocupação nos meios de pagamentos e são complicados de lidar, considerando os desdobramentos inerentes, principalmente em situações em que há controvérsias envolvendo a abertura de processos internos relacionados ao e-commerce.
É possível constatar que, de fato, o modelo negocial dos chargebacks de fraudes se revela um instrumento eficaz inserido em contratos empresariais como forma de evitar infortúnios e prejuízos decorrentes de fraudes praticadas por terceiros ocorridas em processos eletrônicos de sistema de compras.
Porém, em disputas judiciais envolvendo a negativa de repasse de valores pelas empresas intermediadoras de pagamentos aos estabelecimentos comerciais, sob a mera assertiva de que houve contestação da compra registrado pelo titular do cartão utilizado na operação de venda, a responsabilidade sempre irá conspirar contra a intermediadora por eventual falha apresentada no serviço prestado, cuja ocorrência não pode ser transferida ao lojista, na condição de contratante dos serviços.
Deverá a intermediadora agir além do quanto previsto na cláusula chargeback, isto é, aprofundar na investigação da fraude em si ocorrida, isto é, comprovar descumprimento contratual ou ilegalidade na conduta do lojista ou ao menos demonstrar existência de excludente de responsabilidade pelas operações realizadas, trazendo evidências de negligência praticada pelo lojista/estabelecimento comercial.
[1] Geralmente, a operadora poderá não validar determinada operação de venda em algumas situações exemplificativas:
“1) Se for constatada a ocorrência de irregularidades e/ou de circunstâncias que caracterizem indícios ou suspeita de fraudes, nos termos deste Anexo e/ou do Contrato;
2) Não reconhecimento da transação pelo portador;
3) Não cumprimento, pelo lojista (contratante dos serviços de meios de pagamentos), dos termos do Contrato e/ou das regras aplicadas pelas Bandeiras e legislação aplicável;
4) Vulnerabilidades detectadas no ambiente digital do lojista em que se habilita a transacionar como e-commerce;
5) Se for constatada a realização de transações fictícias ou simuladas”.
[2] “É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos”.
[3] “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.
[4] O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro possui entendimento semelhante, de acordo com a Súmula 94: “Cuidando-se de fortuito interno, o fato de terceiro não exclui o dever do fornecedor de indenizar”. Em situações semelhantes envolvendo chargebacks, referido Tribunal aplica a denominada “Teoria do Risco do Empreendimento”, argumentando que eventual fraude constitui hipótese de fortuito interno, inerente à atividade empresarial da apelante, e não exclui o dever de indenizar.
Mateus Augusto Siqueira Covolo é advogado, sócio do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados, atuando na área de Direito Digital e Segurança da Informação, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP