Em meados de 2014 e após longos debates, entrou em vigor a Lei nº 12.965/14, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet. O advento da referida legislação gerou diversas discussões não apenas entre operadores do direito, mas também entre a parcela da sociedade brasileira com acesso à Internet, que ali vislumbrava as consideráveis inovações e mudanças de paradigma que poderiam vir pela frente.
Um dos pontos polêmicos que fomentou debates e aguçou a curiosidade dos interessados foi a chamada neutralidade da rede. Basicamente, trata-se de um princípio relacionado à arquitetura de rede que obriga provedores a tratar de forma isonômica os pacotes de dados que transitam em suas redes[1]. Em outras palavras, significa que as informações que trafegam devem ser tratadas da mesma maneira, sem que haja distinção de conteúdo, tipo de aplicação, origem ou destino.
No Marco Civil da Internet, o princípio da neutralidade da rede está previsto no art 9º, posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 8.771/16. De acordo com o mencionado Decreto, a isonomia garantida por lei somente pode ser mitigada em decorrência de “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações ou da priorização de serviços de emergência”[2]. Contudo, é importante ressaltar que diferenciações com base em critérios como velocidade e limite de banda contratada são permitidas por lei.
Apesar de as primeiras formulações sobre o tema remontarem aos primórdios dos anos 2000[3] – época de expansão da banda larga e aumento exponencial do número de dispositivos em velocidade não acompanhada pela expansão estrutural das redes de telecomunicação – as polêmicas envolvendo a neutralidade da rede ainda persistem, mesmo decorridos mais de cinco anos do início da vigência do Marco Civil da Internet.
Ainda no início das primeiras considerações acerca do mencionado princípio, já existiam indícios de que provedores estariam tratando os dados de forma discriminada, em detrimento de aplicações que pudessem ser prejudiciais aos seus interesses comerciais. Tal discriminação pode ocorrer basicamente de três maneiras: bloqueio de tráfego, redução de velocidade ou cobrança diferenciada a depender do conteúdo.
Diante destas situações, se fez necessário que os legisladores passassem a observar a questão com mais cautela. De acordo com o mapeamento feito pelo Portal Neutralidade da Rede[4], mais de vinte nações atualmente já possuem regulamentação a respeito do tema.
O Chile foi pioneiro, com a elaboração de legislação específica, ainda em 2010. Já a Europa veio a consolidar sua regulamentação sobre o tema somente em 2016, apesar de iniciativas isoladas de alguns países do continente europeu anteriormente. Nos EUA, o assunto é polêmico e já passou por algumas reviravoltas: as primeiras regulações, datadas de 2010, foram anuladas por uma decisão judicial em 2014, o que fez com que a autoridade de telecomunicações publicasse uma nova regra no ano seguinte. Contudo, a nova regulação também não durou muito tempo: o governo Trump a derrubou em 2017[5], reacendendo os debates sobre neutralidade da rede em todo o mundo.
Em suma, a FCC (Comissão Federal de Comunicações dos EUA) simplesmente decidiu derrubar o princípio da neutralidade da rede da legislação norte-americana. Após a referida decisão, as operadoras que atuam nos Estados Unidos estão liberadas para comercializar pacotes de internet com base no conteúdo que o usuário deseja acessar.
Como exemplo prático, imagine-se a situação onde um consumidor pode adquirir um pacote de internet com acesso às redes sociais específicas, mas se desejar acessar uma plataforma diferente das contratadas, precisará desembolsar valores adicionais.
Desse modo, grandes corporações podem ter maiores benefícios econômicos. Por outro lado, pequenos provedores de conteúdo e usuários tendem a sair perdendo. Explica-se: para os pequenos provedores, a neutralidade da rede garante que existam menos barreiras para a entrada de seus produtos e serviços no mercado, pois suas aplicações não serão ofuscadas pela diferenciação no tráfego em detrimento de outras que eventualmente possuam parceria com as empresas de conexão. Já os usuários de uma forma geral terão a garantia de acesso a conteúdo diversificado, não se sujeitando a filtros e priorização de determinados conteúdos.
Para a sociedade como um todo, os benefícios da neutralidade da rede vão desde o crescimento e fomento da inovação até o aumento de receitas e geração de novos empregos.
Recentemente – e principalmente após a decisão da FCC – algumas práticas comerciais e inovações tecnológicas foram alvo de debates e divergências entre os players do setor. São elas: franquia para banda larga, zero-rating e tecnologia 5G. O Portal Internet Lab convidou pesquisadores da UFPR para opinar sobre o assunto em um interessante debate[6].
No que diz respeito à franquia, tal prática consiste na disponibilização de planos pelas operadoras com limitação de dados que o usuário pode consumir. Em que pese a Anatel ter proibido a conduta em um primeiro momento, tal matéria ainda aguarda um veredito final da agência. Apesar da polêmica sobre o tema, entende-se que tal forma de cobrança não viola a neutralidade da rede, resumindo-se apenas a uma prática comercial.
Já o zero-rating[7] consiste no oferecimento de acesso grátis e de forma ilimitada para determinadas aplicações. Como destacado no início deste artigo, esta é justamente uma das práticas que violam frontalmente o princípio da neutralidade da rede, já que há a discriminação do tráfego em razão do conteúdo, como vem acontecendo nos EUA após a decisão da FCC.
Quanto à tecnologia 5G, a questão é um pouco mais complexa. Trata-se da nova geração de internet móvel que substituirá a tecnologia 4G. Sua implementação trará mudanças significativas em termos de IoT (internet das coisas), possibilitando acessos remotos em tempo real, com um impressionante tempo de resposta e um nível de latência (atraso) consideravelmente baixo. Se corretamente implementada, possibilitará a realização de procedimentos médicos à distância e o controle de automóveis de forma remota, por exemplo.
Ocorre que, para garantir a alta velocidade e o baixo nível de latência – levando ainda em consideração a insuficiente infraestrutura das redes móveis – em alguns casos, seria necessário, discriminar pacotes “convencionais” em detrimento do tráfego de dados de serviços , pois, neste exemplo, colocar-se-ia em risco a integridade física de quem estivesse sendo submetido a uma cirurgia à distância ou sendo conduzido por um veículo autônomo, sem motorista.
Portanto, conclui-se que avanços tecnológicos são sempre bem-vindos, e não é diferente com o desenvolvimento da internet: as inovações advindas da implementação da tecnologia, como o 5G, são consideráveis para a humanidade e, mais uma vez, colocam em discussão a neutralidade da rede, reacendendo debates sobre o referido princípio.
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[1] Ramos, Pedro Henrique Soares. Arquitetura da Rede e Regulação: A Neutralidade da Rede no Brasil. Fundação Getúlio Vargas, 2015. Disponível em https://bit.ly/2AHppHG. Acessado em 03/10/2019.
[2] Art. 4º, caput, Decreto nº 8771/16.
[3] Wu, Tim. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, p. 141, 2003. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=388863. Acessado em 03/10/2019
[4] Disponível em http://www.neutralidadedarede.com.br/#tab7. Acessado em 03/10/2019.
[5] Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/15/opinion/1513356962_233831.html. Acessado em 03/10/2019.
[6] Disponível em http://www.internetlab.org.br/pt/especial/neutralidade-da-rede-questoes-atuais-e-futuras-em-debate/. Acessado em 03/10/2019.
[7] Disponível em https://politics.org.br/edicoes/zero-rating-uma-introdu%C3%A7%C3%A3o-ao-debate. Acessado em 03/10/2019.
*Bernardo Cavalcanti Rabelo – Advogado, sócio do Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e pós-graduado em Direito Digital e das Telecomunicações.