O transportador aéreo de cargas internacionais vive literalmente em uma montanha russa, quando o assunto é a norma jurídica aplicada no Brasil para fins de indenização por danos materiais, notadamente quando o transporte é realizado em uma relação comercial.
Atualmente, a discussão tem como foco o projeto de reforma do Código Civil e o atual posicionamento das cortes superiores, respectivamente Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
Conflito
Como adiantado, a limitação de indenização no transporte de cargas internacionais há muito tempo gera discussões jurídicas relevantes. O último capítulo para quem atua no ramo teria sido em fevereiro de 2024, quando o STF fixou que é aplicável a Convenção de Montreal, reafirmando a prevalência da norma internacional sobre legislações internas.
Importante esclarecer que a posição do STF, estampada no acórdão do ARE 1.372.360, que didaticamente reforçou a prevalência da Convenção de Montreal sobre a legislação brasileira quando se trata de transporte aéreo internacional de cargas. O ministro Gilmar Mendes frisou que o artigo 178 da CF determina hierarquia superior às legislações brasileiras e tratados internacionais quando o Brasil é signatário, e com a Convenção de Montreal não poderia ser diferente.
A Convenção de Montreal em seu artigo 22, item 3, fixa limites para indenizações caso ocorra danos a cargas, sendo o objetivo da norma uniformizar e harmonizar as regras internacionais.
“Artigo 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga
Item.3: No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino.”
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Em relação ao projeto de reforma do Código Civil brasileiro, este inclui a proposta de um novo artigo, o 732-A, que estipula:
“As normas e tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros serão aplicados exclusivamente aos danos materiais decorrentes de transporte internacional de pessoas.”
A proposta poderia trazer um melhor alinhamento com as decisões do STF, mas ao excluir o transporte aéreo de cargas das limitações consignadas pela Convenção de Montreal, atrai uma dissonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
As alterações sugeridas pela Comissão de Reforma do Código Civil são claramente contrárias à decisão do STF quanto à prevalência de tratados internacionais sobre normas internas no âmbito do transporte aéreo internacional de cargas. Em nossa opinião, a Convenção de Montreal deve ser aplicada integralmente, sem distinção entre passageiros e cargas.
Dois regimes
A aplicação da norma internacional neste particular se traduz em uma previsibilidade e segurança jurídica para os transportadores. Por outro lado, a proposta aumenta incertezas ao criar dois regimes: um para passageiro e outro para cargas, aumentando a sensação de insegurança jurídica para que empresas operem no Brasil.
Evidentemente, a aplicação diferenciada de normas aumenta os custos operacionais para o transportador e afeta negativamente a competitividade das empresas brasileiras no mercado global, considerando a demora da fixação de uma jurisprudência pacífica sobre o tema, aliada com ma possível criação de uma norma em clara divergência com a Constituição e inobservância à atual jurisprudência da Corte Suprema.
Além disso, essa alteração legislativa certamente gerará impactos econômicos no setor aéreo, encarecendo a operação, cujo custo será repassado aos consumidores. De acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata [1]), o setor de transporte aéreo de cargas movimentou cerca de 65,3 milhões de toneladas em 2022, com uma receita global de aproximadamente US$ 117,7 bilhões. No Brasil, estima-se que o transporte aéreo de cargas contribua com cerca de US$ 4,6 bilhões anualmente para a economia.
Com a criação de um regime distinto para o transporte de cargas, as empresas terão que adaptar seus procedimentos e possivelmente contratar seguros adicionais, resultando em um aumento dos custos operacionais. Esses custos adicionais, inevitavelmente, serão refletidos nas tarifas cobradas dos clientes, impactando diretamente os consumidores finais. Além disso, a incerteza jurídica pode levar a uma retração de investimentos no setor, prejudicando a competitividade das empresas brasileiras no mercado global.
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Sob a perspectiva do Law and Economics, a proposta de alteração do Código Civil representa uma abordagem ineficiente e economicamente prejudicial. A introdução de um regime jurídico distinto para o transporte de cargas cria uma duplicidade normativa que eleva os custos de conformidade e aumenta a complexidade regulatória para as empresas.
Essa situação resulta em uma alocação ineficiente de recursos, onde as empresas precisarão investir mais em seguros e compliance, ao invés de direcionar esses investimentos para inovações e melhorias operacionais. Em última análise, essas alterações podem culminar em um mercado menos competitivo e em preços mais altos para os consumidores, contrariando os princípios de eficiência e maximização do bem-estar econômico.
Ainda há tempo
O momento ainda é oportuno para correções, levando em consideração que o projeto de reforma do Código Civil foi entregue ao Senado em abril de 2024, as discussões no parlamento brasileiro poderão dar um melhor tratamento ao tema.
Em suma, este é um exemplo de que a reforma do Código Civil tem a oportunidade de adequar a legislação brasileira para que fique em consonância com a Constituição, bem como com as decisões proferidas pelos tribunais superiores.
Portanto, é fundamental que o legislador reavalie essa proposta, assegurando a conformidade com as decisões judiciais superiores e promovendo a estabilidade e a uniformidade das regras aplicáveis ao transporte internacional de cargas.
[1] https://www.iata.org/en/iata-repository/publications/economic-reports/quarterly-air-transport-chartbook-q3-2022/