A questão étnico-racial vem escalando novamente e no futuro tende a ganhar dimensão de mainstreaming global, ampliando sua projeção dentro do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança), a despeito de o presidente norte-americano eleito, Donald Trump, prometer acabar com todos os programas federais de Diversidade & Inclusão. No Brasil, a criação de um ODS específico sobre a equidade racial traz um novo fôlego e projeta a discussão sobre racismo e seu enfrentamento para além das fronteiras nacionais e, ao mesmo tempo, pode ajudar a ampliar o compromisso das corporações e de seus stakeholders (partes interessadas) com o tema.
A proposta de expandir o número de ODS, criando o ODS-18 (Igualdade Étnico-Racial) neste ano, em uma iniciativa voluntária do Brasil, inclui o tema da desigualdade racial na Agenda 2030 da ONU, a demonstrar que não há sustentabilidade sem equidade racial. A questão do racismo e da discriminação tem peso fundamental para o Brasil que recebeu o maior número de escravizados das Américas (4 milhões), além de continuar promovendo o contrabando negreiro mesmo depois da proibição legal (Lei Euzébio de Queiróz), com o amparo do Estado/Império. O ODS-18 está buscando uma solução para uma questão nacional, alicerçada na sustentabilidade global da Agenda 2030, porque as crises, mais do que nunca, estão interligadas.
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Ao propor mudanças locais e globais, o ODS-18 enfatiza que a sustentabilidade e a justiça social não podem ser dissociadas, ficando restritas às agendas de governos e empresas, porque envolve todos os atores sociais e políticos. Os negros no Brasil constituem a parte da população mais afetada pela fome, pobreza, informalidade no mercado de trabalho, menores salários, dificuldade de acesso à saúde e baixa escolaridade, vivendo ciclos de pobreza e exclusão ao longo de séculos. Por isso, a luta explicitada no ODS-18 ganha mais importância e urgência, uma vez que a sustentabilidade deve atingir todos os cidadãos, sem exceções.
Ficaram definidas 10 metas principais vinculadas ao ODS-18: eliminar o racismo e a discriminação, todas as formas de violência, garantir acesso à Justiça, representativa equitativa, promover reparação integral das violações socioeconômicas e culturais, perdas territoriais e impactos ambientais em seus territórios, assegurar moradias adequadas, acesso à saúde de qualidade, educação de qualidade e respeito à diversidade linguística.
Há, contudo, um hiato histórico da escravidão a ser superado, como constatado pelo estudo – “Corporate ESG Falls Short: Systemic Anti-Black Racism and Inequality Should be Addressed Through a Cumulative Integrated Approach” – que não fica distante da realidade brasileira: “A América — percebendo a vitalidade da agricultura sulista e da força de trabalho negra para a economia do pós-Guerra Civil — escolheu, em vez disso [da expiação do trabalho gratuito e da tortura sofrida pelos escravizados] a opressão econômica, a privação de direitos e a segregação racial dos negros. Como resultado, as instituições da escravidão continuam a reverberar por toda a sociedade moderna”, ressalva o estudo, que também comenta sobre os esforços de mudança que podem evoluir – ou não – através do ESG.
Dentro do desenvolvimento sustentável, o ESG e os ODS são conceitos fundamentais porque envolvem desafios globais que se conectam. Os ODS constituem um guia, um cronograma ambicioso a ser atingido até 2030. Sua importância pode ser medida na prática. É o caso do ODS-13 – Combate às Alterações Climáticas. Uma prioridade que vem crescendo diante do incremento de fenômenos severos que se repetem isoladamente em várias partes do mundo. Recentemente, registramos aquela que é considerada a maior tragédia climática do século na Espanha, decorrente de tempestades e enchentes que atingiram a cidade de Valência e arredores, deixando mais de 200 mortos e um cenário de devastação. No mesmo caminho da sustentabilidade se encontram as práticas ESG, um sistema que agrega princípios ambientais, sociais e de governança para as organizações interessadas em promover uma abordagem sustentável de seus negócios, inclusive de mitigação e adaptação às mudanças do clima.
O ESG propicia um suporte para viabilizar os ODS dentro da estratégia corporativa para alcançar o desenvolvimento sustentável para todos. No caso de tomarmos como exemplo o fator Social, isso envolve diversidade, equidade e inclusão, condições de trabalho, que passam por um longo temário sobre direitos, salários, horas de trabalho, escravidão moderna, trabalho infantil, discriminação, entre outros pontos das cadeias de suprimentos das corporações. Dentre os 17 ODS, não constava um objetivo explícito de alinhamento no combate ao racismo, que é o ODS-18. Este vem atender à demanda de um país, onde mais de 50% da população é negra. Segundo a ONU, temos nas Américas 200 milhões de afrodescendentes, sendo que 105 milhões no Brasil. Portanto, o fortalecimento do ODS-18 deve merecer atenção das empresas brasileiras, maximizando este novo Objetivo Sustentável e ensejando melhorias no combate ao racismo e discriminação na esfera corporativa.
As empresas que priorizarem o ODS-18 podem promover oportunidades iguais e empoderar seus profissionais pretos, além de manter canais para denúncias relativas a discriminações de todos os formatos, especialmente as microagressões (observações racistas mascaradas). E quem pensa que no mercado de trabalho brasileiro, a questão racial é página virada, deve conhecer a realidade dos processos em curso na Justiça nacional. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou que em 2020 estavam tramitando 150 ações contra racismo, injúria racial e intolerância. Atualmente, elas saltaram para mais de 4 mil. Se esse exemplo não é suficiente, temos o caso emblemático de racismo explícito contra os haitianos no Brasil. Segundo o professor Muniz Sodré, esses imigrantes não conseguem encontrar postos de trabalho na zona sul do Rio de Janeiro, sequer como peões de obras, porque assustam as pessoas com sua “cútis negro-retinta”.
Para mensurar os impactos dos compromissos assumidos, muitas empresas se perdem no labirinto das mudanças regulatórias, mas os frameworks possuem um papel relevante ao darem um “norte” sobre como mensurar os compromissos e metas ESG das organizações – incluindo os sociais (combate ao racismo e à discriminação). No Brasil, está vigente a Resolução 193 do Conselho de Valores Imobiliários (CVM),desde o início deste ano, que definiu os padrões internacionais IFRS 01 e IFRS02 para elaboração dos relatórios voluntários de sustentabilidade por parte das companhias brasileiras com ações na bolsa, para este ano e o próximo.
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A partir de 1º de janeiro de 2027, esses relatórios passarão a ser obrigatórios, devendo ser chancelados por um auditor independente com registro na CVM. A Resolução da CVM está em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU visando, entre outras metas, a promoção da diversidade e inclusão. Em paralelo, o Brasil também vem evoluindo na construção de uma Taxonomia Sustentável, prevista para ser aplicada a partir de 2026, dotada de objetivos ambientais- climáticos e econômicos- sociais.
Além da CVM, o Brasil vem consolidando um Índice Empresarial de Equidade Racial (IEIR), que mede compromissos sociais e resultados obtidos, além dos ambientais e de governança ligados à agenda ESG de centenas de empresas. Os resultados compõem um ranking setorial de acordo com a performance das companhias avaliadas, divididas por áreas de atuação econômica. O índice de 2024, promovido pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, deve ser divulgado ainda neste mês, quando se comemora o Dia da Consciência Negra.
Com a inclusão do ODS-18 é possível afirmar que o tema atrairá mais atenção corporativa para a equidade racial? Aqui e ali há esforços para atingir novas metas antirracistas? Ainda há risco para a continuidade dos compromissos corporativos visando alcançar uma sociedade inclusiva e sustentável? Talvez, as respostas estejam nos aguardando em 2030 ou para além dessa data.
Como diz Frantz Fanon, um pensador negro revolucionário: “Não sou escravo da Escravidão que desumanizou meus pais”; assim como não podemos nos deixar levar pelas ondas anti-woke (de intolerância à justiça racial), que podem varrer o mundo. Estar informado e consciente diante da injustiças que o racismo e a discriminação produzem continua sendo a melhor estratégia dentro e fora do mundo corporativo.
Daneiel Gobi – É Sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados e presidente do Comitê de Diversidade & Inclusão da LBCA.
Santamaria Nogueira – É Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA, doutora pela ECA-USP e presidente do Subcomitê Afro do escritório.