Confira o FAQ elaborado pelo sócio da LBCA, Anderson dos Santos Araujo, sobre precificação e poder público em tempos de pandemia com o avanço do Coronavírus:
Em que circunstâncias o Poder Público deve intervir na economia?
A intervenção do Estado na economia exige elevado grau de zelo pelo poder público, de modo a não causar embaraço ao livre exercício da atividade econômica, como é o caso da fixação de preços em valores abaixo da realidade do mercado.
Assim, podemos constatar que a lei maior do Brasil garante ao Estado o direito/dever de regular a atividade econômica, sempre que se fizer necessário à garantia do interesse social, respeitando a livre iniciativa e os demais princípios decorrentes desse fundamento da ordem econômica.
Daí que, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor, com alteração conferida pela Lei nº. 8.884/94, é estabelecido como prática abusiva elevar, sem justa causa, o preço de produtos ou serviços (art. 39, X do CDC). Nesse sentido, a atuação do Poder Público é posterior, com grande foco no papel fiscalizador que detém o Estado (poder de polícia).
Que parâmetros definem o lucro abusivo?
A problemática parece residir justamente na forma como os órgãos públicos buscam aferir o que é “justa causa” para elevação do preço ou o que constitui “lucro abusivo” do mesmo, já que em uma economia capitalista, o lucro é o principal objetivo perseguido pelas empresas e a oportunidade é, sem dúvida, um dos principais critérios de alavancamento de vendas e maior performance financeira positiva.
Como exemplos mais próximos, cabe relembrar as famosas promoções de Black Friday; as polêmicas em torno dos reajustes em planos de saúde ou a greve dos caminhoneiros, que provocou elevação do preço da gasolina em todo o País. Nesse sentido, severas críticas foram tecidas pelo eminente jurista Rizzato Nunes aos teóricos do mercado empresarial que justificam a possibilidade de aumento de precificação em situações oportunas, no artigo intitulado “A ganância empresarial e o direito do consumidor”.
Outrossim, vale mencionar as palavras de Antônio Herman V. Benjamin, para quem o aumento por justa causa é o contrário do aumento por arbitrariedade, já que “(…) numa economia estabilizada, elevação superior aos índices de inflação cria uma presunção – relativa, é verdade – de carência de justa causa (…)”. Entretanto, nem é preciso dizer que nossa economia, há muito tempo, carece de estabilização.
Como classificar causas justas e injustas para elevar preços?
O ilustre magistrado José Eduardo da Costa, na difícil tarefa de definir o que seriam causas injustas de elevação de preços de produtos e serviços, elencou as seguintes hipóteses: i) ausência de aumento do custo dos insumos utilizados na produção de bens ou serviços; ii) ausência de introdução de melhorias de qualidade no produto ou serviço; iii) introdução de produto ou serviço que não contém alterações substanciais quando comparado ao produto anterior; iv) produtos e serviços semelhantes que não sofrem mudança de preço, desde que os mercados sejam comparáveis e competitivos e; v) elevação do preço resultante de ajuste ou acordo (cartel), inclusive em relação aos custos do produto ou serviço.
Ocorre que, muitos dos critérios utilizados pelo Estado para constatar a existência de abusividade no preço dos produtos e serviços, deixam de levar em consideração outros custos sobre o lucro que o direito não é capaz de medir com a precisão do mercado, o que acaba por desvirtuar o escopo do pretendido pela norma. O método frequentemente utilizado pelos órgãos fiscais, nesse sentido, é o da mera comparação entre os valores atuais e os praticados nos meses anteriores, o que não se mostra suficiente para caracterização de um aumento injustificado, dado outros fatores que incidem sobre a margem de lucro do comércio e prestadores de serviços.
Como podemos definir preço justo?
Nesse sentido, vale citar que o portal do Sebrae sugere que a definição do preço depende do equilíbrio entre o preço de mercado e o valor calculado, em função dos seus custos e despesas. Diz ainda que o empresário deve considerar dois aspectos: o mercadológico (externo) e o financeiro (interno). No mesmo sentido, no sítio eletrônico do Serasa Experian se destaca as variadas formas de precificação de produtos e serviços, inclusive, mencionando o aumento de preço em decorrência da oferta, demanda e concorrência.
Certamente, a precificação não é uma tarefa simples: impostos em geral, gastos com insumos e equipamentos, contas de aluguel, energia, água, luz, despesas com contratação, gestão de pessoas etc., enfim, todos os custos variáveis e outros tantos fixos que podem impactar na margem de lucro da empresa e devem ser levados em consideração, quando da definição do preço do produto ou do serviço.
Ao considerar-se automaticamente como lucro abusivo a porcentagem resultante da diferença entre o valor anterior e o atualmente praticado, sem levar conjuntamente em consideração os demais custos diretos e indiretos que incidem sobre o ganho do comerciante, os preços praticados pela concorrência e o abastecimento do produto no mercado, corre-se o risco do Estado pautar a atividade econômica privada por premissa equivocada, intervindo em uma seara que, pela natureza do sistema econômico do País, seria melhor regulado justamente pela livre iniciativa, por meio do estímulo da concorrência e não pela retirada da atratividade econômica na comercialização de produtos e serviços.
Como conciliar as razões do mercado e o crescimento da demanda?
Em verdade, o que se vê no plano fatídico é que o eventual aumento de preço pelo crescimento da demanda por um produto ou serviço, por si só, não atrai o interesse do Poder Público, para verificação de abusivo na precificação. Tais casos ocorrem quando, em decorrência da escassez gerada por um evento de grande potencialidade danosa social, a precificação que em geral é afeta aos parâmetros do mercado (maior demanda = maior preço), acaba por atrair e sofrer as consequências previstas no plano jurídico e neste caso, as infrações previstas na norma de proteção do consumidor.
Não se sugere – é bom que fique claro – que o Estado não intervenha em casos de abuso do poder econômico, em especial quando se trata de precificação abusiva de produto escasso, sem justa causa, em tempos de calamidade pública, surto, epidemia, endemia ou pandemia.
Ao revés, sugere-se que o papel primordial do Estado, em casos como o presente, seja mais direcionado ao estímulo, ainda que por meio legislativo (ex. incentivos fiscais, facilitação de empréstimos etc.), do aumento da produção de produtos/prestação de serviços que vieram a ser tornar essenciais à população, em decorrência de intercorrências que atinjam a coletividade. Outrossim, que os órgãos públicos investidos no poder de fiscalização de eventual abusividade na atividade econômica, levem em consideração não só os custos do produto/serviço em relação ao fabricante/prestadores em si, mas também todos os custos diretos e indiretos que venham a incidir sobre a venda do mesmo, além dos preços praticados pela concorrência e eventual escassez do serviço ou abastecimento do produto no mercado, em cada caso.
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