Muitos aspectos da vida cotidiana foram fundamentalmente alterados a partir de 2020. A partir do momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a Covid-19 era uma pandemia, as relações do trabalho, as interações sociais e a maneira pelas quais grande parte da população mundial celebrava negócios, acabaram por passar um inédito e acelerado processo de digitalização forçada.
E uma das mudanças mais significativas ocorreu nas operações de compras on-line: segundo o estudo publicado em 2021 pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o comércio eletrônico, somente entre 2019 e 2020, aumentou mais de 81% [1].
O consumo em geral mudou drasticamente durante os estágios iniciais da pandemia. Numa primeira onda, houve uma maior compra de máscaras e produtos de higiene. Após, alimentos prontos e insumos. Finalmente, numa terceira onda, roupas e produtos duráveis. Embora as vendas de varejo no comércio eletrônico já viessem aumentando, os efeitos do isolamento social em muitos países aceleraram todos os prognósticos, obrigando grande parte da humanidade a alterar seus hábitos de consumo.
E a partir do aumento do comércio eletrônico induzido pela pandemia, os consumidores – incluindo as gerações menos experientes em tecnologia – foram obrigados a se adaptar. Desconhecendo os perigos potenciais do comércio online, a grande massa de consumidores tornou-se um alvo ideal para fraudadores. Piratas cibernéticos, dispondo muitas vezes de artifícios e truques já bastante conhecidos, aproveitaram-se das facilidades trazidas pela internet rápida, pelos modernos smartphones de fácil navegação e por uma infinidade de produtos e serviços postos à disposição em aplicativos e websites, para disseminar atos ilícitos dos mais diversos.
O aumento nas transações eletrônicas nos últimos meses ocultou a escalada na criminalidade. O enorme volume de compras lícitas tornou-se o esconderijo perfeito para fraudadores empregarem toda sorte de golpes, muitos deles testados no enorme oceano de novos consumidores online.
O percentual de fraudes no comércio online não são os mesmos em todo mundo. Enquanto Brasil, México e Argentina experimentaram um volume maior de ocorrências simples, como a utilização indevida de número de cartões de crédito, China, EUA e França noticiaram um maior número de fraudes sofisticadas, que envolveram invasões de contas, bots e proxies falsos.
A fraude envolvendo cartão de crédito é, atualmente, o crime mais recorrente do comércio eletrônico brasileiro. Ocorre quando o criminoso obtém acesso a um ou mais números de cartões roubados, obtidos por meio de fraude ou pela compra de dados na dark web.
Sem saber se os cartões estão ativos ou quais são seus limites de crédito, os fraudadores costumam realizar compras online de pequeno valor, geralmente utilizando scripts de programação ou bots, testando vários cartões ao mesmo tempo. Uma vez validado o cartão, parte-se para compras mais expressivas, como a de passagens aéreas.
Segundo o relatório divulgado pela empresa RSA Security and Juniper[2] em 2021, as companhias aéreas constituem um dos setores mais afetados pelas fraudes online.
Além dos golpes decorrentes do uso indevido de cartões de crédito, os passageiros são muitas vezes vítimas do furto de milhas, a partir de aplicativos maliciosos instalados em computadores e aparelhos celulares desprotegidos que expõe o login e a senha dos passageiros aos fraudadores.
E, como não poderia deixar de ser, grande parte dessas ocorrências acabam no judiciário. Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgado em dezembro de 2021, aproximadamente 80 milhões de processos em trâmite no Brasil relacionam-se ao mercado aeronáutico.
Embora não tenham relação direta com fraudes cibernéticas, grande parte dessa judicialização pode ser creditada às mais de 80 empresas (aplicativos abutres) especializadas em instigar os passageiros brasileiros a mover demandas em face das empresas de transporte aéreo. Essas empresas promovem publicidade maciça nas redes sociais, incitando passageiros a promover demandas relacionadas à atrasos e cancelamento de voos, muitas vezes oferecendo a compra de créditos futuros mediante a cessão de direitos, sem que haja um mínimo contato humano com o passageiro.
O impacto das demandas decorrentes de fraudes online, em conjunto com a atuação dos aplicativos abutres, contribuem para a oneração substancial das operações das companhias áreas.
Essa conta, como notado por Luciano Timm em artigo para o JOTA, acaba sendo repassada a todos os demais passageiros da cadeia de consumo, fazendo com que o transporte aéreo brasileiro seja ainda mais impactado.[3]
Exemplificativamente, as Demonstrações Financeiras Padronizadas da Gol Linhas Áreas, publicadas em 31 de dezembro de 2020, apontaram uma provisão contábil de mais de R$ 100 milhões, relativamente a ações cíveis “relacionadas principalmente às ações indenizatórias em geral”, consideradas como de perda provável. Caso também se considerassem as ações judiciais classificadas como de perda possível, a conta chegaria a mais de R$ 160 milhões. Esse número é 20% superior ao montante provisionado em 2019 e seria suficiente para comprar 200 mil passagens aéreas de ida e volta de São Paulo para o Rio de Janeiro.
Infelizmente, grande parte das demandas consumeristas não são tratadas pelos canais disponibilizados pelas empresas ou pelos órgãos de proteção ao consumidor, como a plataforma Consumidor.gov, haja vista a preferência pela solução judicial. Muito embora o índice de solução das principais empresas nos últimos 12 meses seja superior a 75%, o volume de novas ações judiciais aumenta ano a ano.
O paradoxo da judicialização do setor aeronáutico faz com que o aumento no volume das ações judiciais, ao invés de servir aos consumidores, prejudique todo o mercado, na medida em que o custo decorrente da judicialização maciça das ações acaba sendo paga por todos os demais passageiros.
—
[1] Disponível em: <https://unctad.org/news/global-e-commerce-jumps-267-trillion-covid-19-boosts-online-sales>; acessado em: 20 abr 2022.
[2] Disponível em: <https://www.experian.com/decision-analytics/identity-and-fraud/juniper-online-fraud-whitepaper>; acessado em: 20 abr 2022.
[3] TIMM, Luciano Benetti. A judicialização do setor aéreo. Por que é um problema e por que o PL 533 ajuda os consumidores? Jota, 29 set 2021. Disponível em: <https://www.jota.info/coberturas-especiais/aviacao-competitividade/judicializacao-do-setor-aereo-29092021>; acessado em 20 abr 2022.
—
SOLANO DE CAMARGO – Pós-doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito Internacional pela USP, bacharel em direito francês pela Faculdade de Direito Lyon 3, advogado, presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP e sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados