Os fundos de financiamento de litígio estão voltados a custear uma disputa judicial ou arbitral em troca de participação nos ganhos auferidos pela parte financiada.
Esses fundos prosperaram nos Estados Unidos porque o país possui uma das custas judiciais mais onerosas do mundo, portanto, inacessível para grande parte dos americanos e até para empresas, cujas despesas judiciais são majoradas em relação à pessoa física. Uma ação civil pode custar ao litigante US$ 50 mil ou até exceder o valor da causa.
No Brasil, as condições são semelhantes no quesito de dificuldade de acesso à Justiça, mas por motivos diferentes.
Como afirma a professora Maria Tereza Sadek[1], uma das principais pesquisadoras do Judiciário brasileiro, a justiça somente é aplicável quando são vencidas três etapas – ingresso do pleito para obter ou reparar um direito, os caminhos que percorre no sistema e a saída em tempo razoável, o que não acontece no país, excluindo muitos brasileiros do acesso à Justiça e à cidadania plena.
O financiamento é um acordo pelo qual um terceiro, sem relação com a ação, financiará os custos judiciais, honorários advocatícios e periciais da lide de um cliente-parte em troca de um percentual obtido pelo sucesso da controvérsia.
As disputas judiciais de grande monta, nas quais as partes envolvidas são social e economicamente vulneráveis e não têm como fazer frente financeiramente a um pleito justo diante de uma disputa contra o Estado ou uma grande companhia, como no episódio do rompimento da barreira de detritos da Vale em Brumadinho (MG), por exemplo, no qual as vítimas são pessoas de baixa renda, não dispõem de recursos para uma disputa legal longa e de alto risco.
No caso de não haver recuperação da disputa judicial, não haverá obrigação de reembolsar o fundo. O investimento de litígios é diferente de um financiamento comercial, uma vez que não exige garantias sobre a dívida, porque são os fundos que correm os riscos.
Nos Estados Unidos, dois momentos foram cruciais para ampliar o financiamento de litígios: a tragédia do 11 de setembro, que ceifou mais de 3.000 vidas e demandou diferentes demandas judiciais junto às cortes norte-americanas, e a crise econômica de 2008, que afetou a liquidez das empresas, que precisavam melhorar sua performance financeira e reduzir os custos, inclusive judiciais, e passaram a se valer dos financiamentos de litígios para administrar seus passivos processuais.
Cada estado norte-americano tem suas próprias regras para o financiamento de litígios.
Na Europa, os fundos de financiamento de litígio também estão em expansão, embora comparativamente aos norte-americanos ainda sejam pequenos, com estimativa de US$ 1,5 bilhão no mercado europeu ante US$ 101 bilhões nos EUA. Eles, no entanto, devem gerar nos países da União Europeia € 600 milhões de receita até 2027 e em todo o mundo podem totalizar € 80 bilhões. Há quem diga que será o futuro dentro da prática jurídica.
A UE está estudando regulamentar os fundos de financiamento de litígios no sentido de agir preventivamente, estipulando limite para taxas de retorno e divulgação do acordo para o tribunal e partes.
Em setembro do ano passado, o Parlamento Europeu votou favoravelmente para a adoção do Relatório Voss[2], de autoria do eurodeputado Axel Voss, que propõe regulamentar os financiamentos de litígios, a partir da recomendação de salvaguardas para garantir transparência, confidencialidade e governança.
Também estabeleceu um sistema de supervisão independente para cada estado membro, dever fiduciário dos financiadores, sendo que o controle do processo é do reclamante e de seus representantes legais. Ainda estabelece um limite de 40% do prêmio a que os financiadores teriam direito.
Até por sugestão do Relatório Voss, a União Europeia quer ir mais longe e estuda uma proposta para criar uma diretiva para os fundos de litígio ainda este ano com normas mínimas comuns para proteção dos financiados.
A International Legal Finance Association, que reúne financiadores de litígios de todo o mundo, quer trabalhar com os europeus no sentido de que a Justiça seja eficaz para as partes reclamantes, não haja intervenção desnecessária no mercado e que a prática não seja entendida erroneamente como alguma espécie de ameaça à administração da Justiça.
No Brasil, o mercado dos fundos de financiamento litígio vem crescendo, sendo adotado amplamente pelas Câmaras Arbitrais.
Também não encontra restrições legais, tanto que em decisão inédita tomada no ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou decisão da primeira instância que obrigava a parte de uma demanda judicial a revelar informações sobre o financiador de seu litígio, reconhecendo a corte que essa modalidade de financiamento é admitida pelo ordenamento jurídico nacional, não havendo restrição para que terceiros financiam os altos custos de um processo judicial.
A cessão de crédito, outro lado do financiamento de litígio, está igualmente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, segundo o Tema 361, de repercussão geral.[3]
Em inúmeros países, os fundos de financiamento de litígios tiveram de enfrentar oposições legais, decorrentes de antigas doutrinas que vetavam que um terceiro, não sendo parte no processo judicial, viesse a ter algum tipo de interferência numa lide. Essa desconfiança vem sendo superada à medida que fica claro que o financiador não tem ingerência sobre a decisão da estratégia jurídica adotada pela defesa, até porque dessa forma mantém-se o sigilo entre cliente e advogado.
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Um caso bem emblemático é o da Austrália, onde os fundos começaram a atuar em litígios falimentares, sendo que o entendimento jurisprudencial veio continuamente restringindo a proibição que incidia sobre os fundos.
O leading case australiano ocorreu em 2006 – Campbells Cash and Carry Pty.Ltd. v. Fostif Pty.Ltd –, quando o Judiciário da Austrália reconheceu que o financiamento de litígios não consistia em abuso processual, estabelecendo que o financiador da causa pode escolher os advogados e discutir a estratégia da parte financiada. A maior disputa judicial envolvendo uma ação de direitos humanos na Austrália obteve financiamento de um fundo de litígios.
Foi uma ação coletiva de 2016 referente ao histórico de pagamento insuficiente de salários a trabalhadores aborígines. O acordo foi fechado em € 128 milhões.
A liquidez propiciada pelos fundos de financiamento de litígios também vem sendo bem recebida como alternativa de financiamento para escritórios de advocacia, que são beneficiados com a antecipação dos recebíveis judiciais relativos às ações de seu portfólio.
Muitos processos possuem tramitação de longo prazo e o fundo permite um efetivo fluxo de caixa e cobertura financeira para as bancas em troca de participação de fundos nos resultados do processo.
Não se sabe ao certo, mas se especula que os fundos de financiamento de litígios terão um lugar de destaque na Justiça, no futuro próximo, uma vez que os litígios propiciam uma classe de ativos atrativa e menos instável que outras do mercado.
Se a cultura dos investidores já mudou, vem caminhando nesse sentido entre os operadores do direito e das partes litigantes, que veem nessa prática a oportunidade de conseguir a vitória em um litígio, mesmo quando no polo passivo estiver o Estado ou uma grande corporação.
[1] Disponível em https://www.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/Maria-Tereza-Sadek.pdf
[2] Disponível em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0308_EN.html
[3] Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=361
RICARDO FREITAS SILVEIRA – Sócio-head da Lee, Brock, Camargo Advogados, doutorando no IDP (Instituto Brasileiro de Ensino), mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP e especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University