A Justiça do Trabalho não quer ficar mais tão dependente de testemunhas. Juízes e servidores estão sendo treinados para a produção de provas por meios digitais. Além de postagens em redes sociais, já consideradas em processos trabalhistas, registros em sistemas de dados das empresas, ferramentas de geoprocessamento e até biometria passam a ser adotados para provar, por exemplo, a realização de horas extras pelo trabalhador.
O assunto ganhou importância na pandemia da covid-19, com a dificuldade dos juízes para ouvir testemunhas. E levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a criar um grupo de trabalho para desenvolver um modelo nacional para as solicitações – uma espécie de Sisbajud (antigo Bacen Jud) da prova digital.
“Muitas pessoas [testemunhas] não têm recurso de informática e tiveram dificuldade para participar de audiência telepresencial. Não tinha computador, tinha dificuldade com o celular. E também surgiu a preocupação pela falta de controle por parte do juiz”, afirma a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministra Cristina Peduzzi.
Como o depoimento por videoconferência não era possível em todos os casos, acrescenta a ministra, surgiu a ideia da capacitação para provas digitais, para que juízes e servidores aperfeiçoassem o trabalho. “O depoimento processual contém fragilidades, envolve o nervosismo da testemunha, a perda de memória e, em casos extremos, o falso testemunho com intenção de manipular um julgamento”, diz.
Desde o fim de 2020, a Justiça do Trabalho vem capacitando juízes e servidores, por meio do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat). Os cursos mostram que registros em celulares esclarecem se o empregado que pede horas extras estava logado em alguma rede do trabalho depois do expediente, por exemplo. Mecanismos de geolocalização também fornecem essa informação e podem ser solicitados pelos juízes na produção de provas.
Para o promotor de justiça Fabrício Rabelo Patury, que participa do grupo no CNJ e também é professor de direito digital na Faculdade Baiana de Direito, as fronteiras da produção de provas mudaram. “Toda nossa vida está sendo cadastrada, a geolocalização, o que pesquisou, comprou, onde esteve”, afirma.
Em um dos casos que Patury cita nas aulas, uma funcionária foi demitida e queria provar que avisava o proprietário sobre o assédio moral cometido pelo gerente. A empresa alegou que ele não era gerente porque não estava na folha de pagamento. A juíza do caso, porém, utilizou o registro dele no LinkedIn como gerente da empresa e deu ganho para a empregada.
“Ele não estava na folha, era um prestador de serviço, mas ele fez prova autodeclarativa de que era gerente da empresa”, diz o professor. Em outra situação, fora da seara trabalhista, lembra, a prova digital foi usada para localizar, por meio de IP (Internet Protocol), uma tevê furtada.
“Todos os dispositivos que usamos capturam dados nossos. Se queremos fazer prova sobre algo é mais razoável pensar e buscar as informações do que ficar batalhando as chamadas ‘provas de impressões’. A testemunha relata que ela teve uma impressão, o que não é necessariamente a verdade, e por isso a prova testemunhal é tão falha”, afirma Patury. A prova digital, por sua vez, acrescenta, é técnica, objetiva e isenta de impressões.
Na área trabalhista, no caso de uma empregada doméstica que queira provar vínculo, é possível, por meio do IP do celular e da geolocalização, saber quantas horas ela ficava no emprego, segundo Guilherme Caselli de Araújo, delegado de polícia do Estado de São Paulo e integrante do grupo do CNJ. “Qualificamos [os servidores] a colher provas e comprovar vínculo trabalhista usando cenário digital. O juiz não precisa esperar a coleta de prova com testemunha”, diz.
Há ainda o uso de imagens, explica o delegado, para comprovar alguma informação. Ele destaca um caso de demissão por justa causa julgado na pandemia. “Uma funcionária de uma clínica apareceu em uma festa numa foto publicada na rede social de uma amiga. Ela falou que a foto era antiga. Mas pela análise de metadados foi comprovado que a foto era recente”, afirma Araújo.
Alguns provedores, diz ele, se negam a fornecer dados de usuários, alegando que o juiz trabalhista não tem prerrogativa para esse pedido. “A força tarefa do CNJ vai formar uma doutrina e plataforma únicas para haver comunicação direta com os gigantes de tecnologia”, afirma. Seria, acrescenta, uma espécie de “sistema Bacen Jud” para os provedores. A partir da plataforma, provedores se habilitam e o juiz determina o que eles têm que fornecer.
De acordo com Leonardo Palhares, presidente da Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), que reúne as maiores do setor de tecnologia, em muitos casos há dificuldades para atender os pedidos. Ele diz que, na seara trabalhista, há um descasamento entre o objetivo da prova e a solicitação feita. “Para proteger a sociedade posso me dar ao luxo de relativizar um princípio como o da privacidade, mas não em um movimento interno para proteger a empresa, uma parte que é mais forte que a outra”, afirma ele, lembrando que, na área trabalhista, o ônus da prova é do empregador.
Outro ponto são os prazos para a guarda de registros e dados de usuários, segundo especialistas. O uso de provas digitais é regulado pelo Marco Civil da Internet e elas podem ser solicitadas a diferentes operadores – provedores de conexão (os que fornecem a rede), de streaming (as plataformas de áudio e vídeo) e de aplicação. No caso de registros de acesso a aplicações de internet, lembram, as informações devem ser guardadas por seis meses pelo provedor de aplicação e um ano pelo de conexão. Essa é a informação utilizada quando o pedido é pelo IP que acessou uma rede em determinada data e hora.
“Se você espera para pedir, as empresas não têm mais a prova”, afirma Paulo Vinícius de Carvalho, sócio do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados, que atua para empresas na área de tecnologia. Mas, acrescenta o advogado, “a digitalização das provas é uma consequência da digitalização do mundo”.