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Lei do Voo Simples e avanço na punição aos passageiros indisciplinados

Lei do Voo Simples e avanço na punição aos passageiros indisciplinados

A Lei 14.368 de 14 de junho de 2022, conhecida como a Lei do Voo Simples, trouxe diversas inovações para o setor aéreo. A Lei visa a modernizar o setor, reduzir custos, facilitar investimentos, desburocratizar procedimentos e alinhar as regras brasileiras com o cenário internacional.

Dentre esses avanços, a Lei traz uma disposição específica em relação aos passageiros indisciplinados, possibilitando que as companhias aéreas não vendam passagens, pelo período de 12 (doze) meses, a passageiros tidos como indisciplinados. Os Estados Unidos e os países europeus possuem regramento semelhante, possibilitando que os passageiros sejam barrados até mesmo por tempo indeterminado pelas companhias aéreas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, um passageiro indisciplinado pode até mesmo ser multado pela Federal Aviation Administration (FAA) – órgão equivalente à Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) – em US$ 37 mil
por cada incidente.

Ainda no cenário internacional, a Convenção de Chicago de 1944, em seu anexo 17, já previa que os Estados
deveriam conceder autonomia para as companhias aéreas promoverem a segurança do voo em relação aos “passageiros desordeiros”.

Mas o que é um passageiro indisciplinado? Nos termos do Decreto N.o 7.168/10, passageiro indisciplinado é
aquele “que não respeita as normas de conduta em um aeroporto ou a bordo de uma aeronave ou que não
respeita as instruções do pessoal de aeroporto ou dos membros da tripulação e, por conseguinte, perturba a
ordem e a disciplina no aeroporto ou a bordo da aeronave.”

Lamentavelmente, nos últimos anos temos visto diversas cenas que retratam essa situação. São passageiros que se
recusam a usar máscara dentro da aeronave, passageiros alterados, passageiros que se recusam a cumprir normas
de segurança de voo, passageiros que. por vezes, recorrem a agressões verbais e físicas contra funcionários dos
aeroportos e tripulação.

Situações como essas geram custos adicionais para as companhias aéreas.

Imagine, por exemplo, um voo que teve de fazer um pouso antes do previsto em outro aeroporto, para realização do desembarque do passageiro indisciplinado; a companhia terá que arcar com custos de taxas de pouso e decolagem desse aeroporto; terá que reabastecer a aeronave gerando custos com combustíveis; caso o procedimento todo demore.

Poderá, ainda, ter que trocar sua tripulação de cabine, caso excedam as horas de voo daquela tripulação; terá custos adicionais de manutenção que se realizará antes da nova decolagem; além de custos com reposição de peças e equipamentos de dentro da cabine, caso tenha ocorrido algum dano.

Nessa escalada de imprevistos, poderá também prejudicar outros voos em razão do pouso não previsto na rota original, causando atrasos em pouso e decolagens de outros voos . Isso tudo são apenas alguns dos exemplos que tais ocorrências causam às companhias aéreas e aos voos.

Mas não é apenas a companhia aérea que sairá prejudicada nessas situações, todos os demais passageiros serão afetados, pois além de enfrentar o estresse dentro da aeronave com o passageiro malcomportado, ainda serão vítimas do atraso do voo, chegando aos seus destinos em horários não previstos ou até mesmo perdendo seus voos de conexão em decorrência dos atrasos.

Os passageiros afetados, por muitas vezes, acionam judicialmente a companhia aérea para serem indenizados por eventuais prejuízos sofridos em razão do atraso ou perda de voo, trazendo ainda mais prejuízos à companhia.

A situação tem se agravado nos últimos anos e está configurada em um levantamento realizado pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR). Em 2021, foram registradas 612 (seiscentas e doze) ocorrências envolvendo passageiros indisciplinados, o que representa um número três vezes maior do que o registrado no ano anterior, trazendo prejuízos incalculáveis para as companhias aéreas e para seus passageiros. 1

O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.o 7.565/86) em seu art. 168 prevê a possibilidade do desembarque de passageiro que “comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo” por determinação do comandante, que é quem exerce autoridade dentro da aeronave.

Mas a legislação não previa nenhuma punição ao passageiro que causava tais transtornos, de modo que a companhia se limitava apenas a realizar o seu desembarque.

Embora o desembarque compulsório do passageiro seja autorizado, nunca houve autorização para que as companhias se abstivessem de vender para esses passageiros desordeiros que lhes causam transtornos.

Pelo contrário, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.o 8.078/90) em seu art. 39, inciso IX reputa como abusiva a conduta de um fornecedor em se recusar a vender para um consumidor que esteja disposto a adquirir seus produtos e serviços mediante pagamento.

Por isso, a Lei do Voo simples traz avanço relevante para as companhias que poderão – ainda que pelo limitado período de 12 (doze) meses – se abster de vender para esses passageiros.

A Lei alterou o art. 232 do Código Brasileiro de Aeronáutica que agora passa a dispor:

Art. 232. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas legais constantes do bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se de ato que cause incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifique a aeronave, impeça ou dificulte a execução normal do serviço.

1° A autoridade de aviação civil regulamentará o tratamento a ser dispensado ao passageiro indisciplinado, inclusive em relação às providências cabíveis.

2° O prestador de serviços aéreos poderá deixar de vender, por até 12 (doze) meses, bilhete a passageiro que tenha praticado ato de indisciplina considerado gravíssimo, nos termos da regulamentação prevista no § 1o deste artigo.

3° A hipótese de impedimento prevista no § 2o não se aplica a passageiro em cumprimento de missão de Estado, possibilitado o estabelecimento de outras exceções na regulamentação prevista no § 1o deste artigo.

4° Os dados de identificação de passageiro que tenha praticado ato gravíssimo de indisciplina poderão ser compartilhados pelo prestador de serviços aéreos com seus congêneres, nos termos da regulamentação prevista no § 1o deste artigo.

Caberá à ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) editar regulamentação específica sobre o passageiro indisciplinado, dispondo sobre quais atos serão considerados atos de indisciplina e, ainda, qual a gravidade do ato
cometido, pois nos termos do §2o de art. 232 apenas os atos gravíssimos é que estarão sujeitos à penalidade de banimento.

Um outro avanço interessante, ainda neste ponto, é que as companhias aéreas poderão compartilhar entre si quais são os passageiros que cometeram os atos de indisciplina em seus voos. Esse ponto também será disciplinado pela ANAC, mas a legislação já nos mostra a ideia da criação de uma lista única para os passageiros indisciplinados.

Nos Estados Unidos, por exemplo, cada companhia aérea tem a sua lista, de modo que a existência de uma lista única e compartilhada já é uma demanda das companhias aéreas por lá, o que reforça mais uma vez o espírito de modernização desta Lei.

Sem a regulamentação da ANAC e com o pouco tempo de vigência da Lei é cedo para dizer como será o comportamento dos Tribunais em relação a esse poder da companhia aérea em se recusar a vender passagens a um passageiro indisciplinado, isso porque, em tese, haveria um conflito entre a nova legislação e o CDC.

Mas o conflito é apenas em tese, porque teremos que nos ater ao princípio da especialidade que determina que a Lei especial deve prevalecer sobre a Lei geral. Assim, enquanto o CDC regula relações de consumo de um modo geral, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) dispõe especificamente sobre o setor aéreo, inclusive, sobre direitos e deveres dos passageiros, sendo essa, portanto, a lei especial que deve prevalecer sobre a lei geral (CDC).

Isso não quer dizer que o art. 39, inciso IX do CDC foi revogado, mas apenas que ele será inaplicável aos casos de
passageiros indisciplinados, dentro do que será regulamentado pela ANAC. Mas, o artigo permanecerá plenamente válido para outras relações de consumo e outras situações.

A Lei do Voo Simples atende a uma demanda antiga das companhias aéreas de poderem se abster de fornecer um
serviço para um passageiro que lhe causa prejuízos e transtornos. Em um setor custoso como o aéreo, um pequeno atraso pode representar muitos custos além de aborrecimentos aos demais envolvidos.

É importante que cada vez mais se crie na sociedade a necessidade de respeito ao CBA e às regulamentações da ANAC – assim como já ocorre em outros setores econômicos – pois a despeito de constituírem relações de consumo, o respeito à Lei especial deve sempre prevalecer, pois é ela que consegue se ater às peculiaridades de cada setor.

Embora a Lei já esteja em vigor, para que a punição aos passageiros malcomportados passe a valer será necessário inicialmente que a ANAC proceda à regulamentação. Ainda assim, esse é um dos muitos avanços trazidos pela Lei do Voo Simples a ser comemorados pelo setor.

1 https://economia.uol.com.br/todos-a-bordo/2022/04/23/passageiros-indisciplinados-desobedientes-prejuizo-
companhias-aerea.htm

*Marcela Permuy Gomes é advogada e sócia da Lee, Brock, Camargo (LBCA) advogados

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