Diante de um cenário global, onde os riscos econômicos, ambientais, sociais e geopolíticos continuam ampliados, o tema do Fórum Econômico Mundial de Davos 2023 “Cooperação em um mundo fragmentado” é mais do que justificado.
Para alguns pesquisadores e analistas, como Pierre-Olivier Gourinchas do FMI, o mundo está se fragmentando em diferentes blocos econômicos, sistemas políticos, padrões tecnológicos, volatilidade dos mercados financeiros e desglobalização , o que vai exigir a formulação de novas políticas e cooperações multilaterais.
Na Biologia, o conceito de fragmentação se aproxima dessa formulação ao se referir à capacidade de alguns organismos se dividirem e produzirem novos entes. Metaforicamente, podemos ver o “mundo fragmentado” como fomentador de crises continuadas, que ganham vida própria.
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Davos não conseguiu responder se o mundo terá de aprender a viver dentro das regras estabelecidas pela fragmentação, ansiando pela ampliação do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança), mas em sua reunião anual sinalizou para a necessidade de buscar um sistema econômico que assegure a sustentabilidade de todos os habitantes do planeta, consolidando o capitalismo das partes interessadas (stakeholders).
As externalidades negativas de um produto ou serviço não podem mais ser aceitas como normais. Para Saadia Zahidi, diretora gerente do Fórum Econômico Mundial, o “ESG deve permanecer na frente e no centro das empresas que desejam ajudar a abordar e mitigar algumas dessas preocupações, seja no lado ambiental ou social.” [¹]
Os dados apresentados no Relatório Global de Riscos 2023[²] do Fórum Econômico Mundial apontam para a necessidade de o mundo estar preparado para enfrentar grandes desafios, a partir de diretrizes bem definidas: “Precisamos agir juntos, para moldar um caminho para sair de crises em cascata e construir a preparação coletiva para o próximo choque global, seja qual for a forma que possa assumir”.
O relatório também se refere à subestimação e falta de preparo para enfrentar riscos macro emergentes, ou seja, os “rinocerontes-cinzas”. Estes consistem em uma teoria criada pela analista de economia mundial e estrategista global, Michele Wucker (The Grey Rhino:How to Recognize and Act on the Obvious Dangers We Ignore) há 10 anos, coincidentemente apresentada pela primeira vez em Davos. [³]
Concretamente, o rinoceronte é um animal de duas toneladas, com grande capacidade de ataque. Simbolicamente é uma ameaça grande, óbvia, mas muitas vezes, negligenciada. É muito similar às crises que o mundo vive, sendo que cada país terá reações diferentes para enfrentar seu próprio rinoceronte-cinza.
Para o Fórum de Davos, a volatilidade dos cenários nos próximos anos e a erosão na cooperação geopolítica tem potencial para gerar policrises, envolvendo riscos ambientais, geopolíticos, socioeconômicos e de oferta e demanda de recursos naturais, puxados pela escassez de alimentos, água, metais e minerais, com potencial para fomentar crises humanitária e ecológica, que só podem ser minoradas por uma ação coletiva mais positiva, inclusiva e estável.
A imagem da crise global está exposta em um fluxograma contido no relatório do Fórum Econômico Mundial – 2023.
Há rinocerontes-cinza no pilar “S” do ESG, quando apenas 1% dos US$ 67 bilhões destinados à promoção da equidade racial pelas maiores empresas do mundo acabou sendo utilizado. Um risco óbvio, grande e negligenciado.
Atualmente, os profissionais negros ocupam apenas 5% dos cargos de chefia nas empresas, quando representam 13% da população dos EUA, sendo que nas companhias que compõem o ranking da Fortune 500, apenas 262 apresentaram dados de raça e etnia em seus relatórios e apenas 22 trouxeram dados ESG incluindo o fator social.[4]
Outra negligência vem do pilar “E”, quando o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática (IPCC) já definiu cientificamente que o mundo precisa cortar 43% das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) até 2030 para conter o aquecimento global e a crise climática e chegar à economia líquida zero em 2050.
Para o Fórum, todos os principais riscos que divisaremos nos próximos 10 anos são ambientais: fracasso na mitigação da crise climática, perda da biodiversidade e colapso do ecossistema.
Reconhecer o rinoceronte-cinza ajuda a lidar com problemas assustadores e de grandes dimensões, assim como ter uma equipe ou um conselho de administração para apoiar essa decisão. Um rinoceronte-cinza pode estar em uma empresa, no mercado de capitais, em um governo ou soltos por esse mundo cada vez mais fragmentado. Além dos perigos que implicam, podem também trazer oportunidades, porque impõem um sentido de urgência para avaliar e gerenciar riscos.
Segundo Wucker, mesmo em um safari fotográfico é preciso treinar os olhos para ver uma manada de elefantes ou de rinocerontes por mais inacreditável que isso pareça. Reuniões como a COP (Cúpula do Clima) e o Fórum de Davos ajudam nesse sentido. As corporações privadas e os governos passam a ver com mais clareza as ameaças mais prováveis que surgem pela frente, adotando medidas que evitem um desastre.
É necessário levar em conta a rapidez com que o rinoceronte chega e se é recorrente, como as crises financeiras. Dentre os quatro tipos elencados por Wucker, tem ainda o meta-rinoceronte, que simboliza a tomada de decisão na governança corporativa e com a qual não se pode colidir, e os rinocerontes não identificados, apontados como as ameaças que estão por vir.
Para a autora, que faz sucesso na China com sua teoria, o país com a segunda maior economia do mundo tem de lidar com diferentes tipos de rinocerontes-cinzas ao mesmo tempo, caso da crise climática, por exemplo, sendo que se este rinoceronte-cinza for ignorado, pode gerar muitos outros, como a degradação ambiental, a insegurança alimentar, mais mortes por poluição, desertificação, enchentes etc. para citar apenas o pilar ambiental.
O relatório do Fórum de Davos recomenda uma abordagem “visando reforçar nossa resiliência a riscos de longo prazo e traçar um caminho para um mundo mais próspero”. Enfrentar rinocerontes-cinzas em cenários de crises simultâneas exigirá que os atores sociais, políticos e econômicos saibam identificar os rinocerontes-cinzas e preparem a resposta adequada.
No relatório, as ameaças mais graves a curto prazo são o custo de vida, desastres ambientais e confrontos geoeconômicos, tendo como principais vítimas as populações mais vulneráveis.
Em Davos, o Brasil também enfrentou seu rinoceronte-cinza: uma política de desmonte ambiental e seus efeitos e prometeu retomar a agenda ambiental, iniciativas de proteção de seus biomas, resgate do Fundo Amazônia, paralisado desde 2019, zerar o desmatamento até 2030 , criar um mercado regulado de carbono e dar atenção redobrada às energias renováveis.
O Fundo Amazônia, administrado pelo BNDES, deve contar com novos financiadores além da Noruega e da Alemanha. O Brasil soube divisar o risco e tomou uma decisão para criar um novo paradigma, afirmando que o país deixará de ser pária ambiental para voltar a ser protagonista global na esfera do meio ambiente.
A contagem regressiva para o confronto com novos rinocerontes-cinzas já começou, embora o ESG tenha avançado e criado resistências. Contudo, são apenas 7 anos para atingirmos a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável.
Este ano acontecerá em setembro a Cúpula dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da Agenda 2030 da ONU para acelerar as iniciativas visando a atingir os 17 ODS’s estratégicos para transformar o mundo, reduzir a pobreza, prover mais educação, mais saúde, proteção social, oportunidades, proteção ambiental, dignidade e direitos humanos.
O futuro sonhado na visão do Fórum de Davos ainda é possível, desde que se saiba reconhecer, definir estratégias e agir coletivamente para superar os riscos trazidos pelos rinocerontes-cinza que se, ignorados por muito tempo, podem ocupar uma empresa, um país ou até o planeta todo, nos lembrando da obra genial do teatrólogo romeno Eugène Ionesco, “O Rinoceronte”.
Tudo começa com o surgimento de um rinoceronte, mas aos poucos toda a população acaba sendo metamorfoseada e se transforma em rinocerontes, numa crítica contundente ao pensamento totalitário, ao conformismo e à renúncia da própria humanidade. “A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve”.[5]
¹ https://fortune.com/2023/01/13/world-economic-forum-risk-report-esg-davos-agenda-2023/
² https://www.weforum.org/reports/global-risks-report-2023/
³. WUCKER, Michele -. O Rinoceronte Cinza. Porto Alegre: Citadel, 2021
4 https://fortune.com/2021/06/02/racial-equity-diversity-inclusion-data-fortune-500-measure-up/
5. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
FABIO RIVELLI – Advogado, sócio da LBCA, mestrando na PUC-SP e presidente da Comissão de Inovação, Gestão e Tecnologia da OAB-Guarulhos