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O alcance do fogo e dos stakeholders

O alcance do fogo e dos stakeholders

Uma teoria que vem ganhando solidez na agenda corporativa e na política são os stakeholders ou partes interessadas. Nas corporações empresariais, os stakeholders são os acionistas, clientes, colaboradores, fornecedores, comunidades, agências controladoras etc.).

No caso do Poder Público, o espectro de stakeholders se amplia, incluindo a população (sociedade civil), o Judiciário, o Parlamento, funcionários da administração pública, outras autoridades, empresariado, academia, demais países, mídia etc.

Gomes, Osborne e Guarnieri, que realizaram um extensivo levantamento na literatura sobre influências dos stakeholders no desempenho de governos locais, evidenciam algumas teses. Entre elas, que essas influências guardam semelhança a fantasmas que assombram gestores públicos: “As influências dos stakeholders podem ser difíceis de lidar, sendo algumas abstratas demais para serem traduzidas em indicadores e números. No entanto, até enfrentá-los, os fantasmas continuam a nos assombrar”.[1]

O conceito dos stakeholders, orbitando o ESG (boas práticas ambientais sociais e de governança) se expandiu. Surge no Stanford Research Institute na década de 1960 e se materializa na obra de Robert Freeman, Strategic Management: A Stakeholder Approach, em 1984. O autor define stakeholders como sendo qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser afetado pela realização dos objetivos da organização. O conceito ganhou mais de 50 definições ao longo das décadas e inúmeras categorizações, alcançando mais materialidade quando aplicado às empresas.

Diante de um cenário atípico vivido no Brasil atualmente, de seca histórica e recorde em focos de incêndio, o papel dos stakeholders ganha importância. De acordo com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais), há seca severa em 50% dos estados e mais intensamente nos biomas da Amazônia, Pantanal e Cerrado.

O registro dos focos de incêndio é ainda mais devastador: florestas e áreas cultivadas do Brasil queimam como se fossem uma fogueira de extensão quase épica, a devorar tudo à sua frente. O mês de agosto registrou número recorde de mais de 68 mil focos, espalhados por 16 estados, estando Mato Grosso, Amazonas e Pará com mais de 8.000 focos de fogo, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A seca severa, fenômeno associado às mudanças climáticas, somada a um El Niño intenso, à prática de queimadas para preparar o solo para o plantio (já proibida) e a possíveis incêndios criminosos (12 suspeitos já foram presos em São Paulo) tem ajudado a fomentar os focos de incêndio e a transformar o Brasil em um grande fogaréu.

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Isso traz prejuízos para a saúde da população com o aumento da poluição atmosférica, coloca em risco a biodiversidade e o agronegócio, mudando a rotina das pessoas com fechamento de aeroportos, escolas etc. Já se estima uma perda de R$ 1 bilhão.

Não há limite para o alcance da fumaça gerada pelo fogaréu a partir dos milhares de focos, principalmente da região amazônica. A fumaça das queimadas já alcança 11 estados do Brasil e áreas da Argentina, Bolívia, Paraguai e Peru. Os “rios voadores” – como são conhecidos os fluxos de vapor de água do oceano Atlântico que fomentam a chuva na Amazônia e trazem a umidade da floresta amazônica para regiões do Sudeste e Centro-Oeste, influenciando precipitações e equilibrando o clima – estão sendo drenados sob o impacto do fogo.

Pior: o fogaréu tem contribuído para o Brasil atingir um nível de desmatamento recorde. Como ressalta o professor e ambientalista Antonio Nobre, “os processos da vida que operam na floresta contêm complexidade quase incompreensível, com um número astronômico de seres funcionando como engrenagens articuladas em uma fenomenal máquina de regulação ambiental”.[2] Essa máquina do clima pode ser emperrada pelo avanço dos focos de incêndio, que não retrocedem e cujo grande risco é continuar devastando.

Na gestão de riscos do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) o desmatamento (pilar ambiental) é visto como um dos mais críticos pela dimensão de seus graves impactos, ao gerar o aumento das emissões de carbono, perda da biodiversidade e erosão do solo. As florestas têm um papel fundamental na estabilização climática da Terra, calcula-se que absorvam cerca de 40% das emissões de Gases de Efeito Estufa. Agora, as florestas estão em sincronismo inverso, emitindo carbono.

Diante dessa realidade, ficará mais difícil para o Brasil cumprir sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), conforme compromisso assumido pelo país no Acordo de Paris, que no atual governo voltou ao patamar estabelecido de 2015. Segundo ele, o Brasil reduzirá suas emissões em 43% até 2030, devendo cortar 1,2 bilhão de toneladas líquidas de dióxido de carbono equivalente (CO2e).

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A situação que o fogaréu impõe é inquietante e conflita com o cânone da atual política ambiental brasileira. Vários estudos científicos já apontaram que desmatamento e queimadas estão interligados, especialmente no período de estiagem de agosto a outubro, mas a conta não fecha. O governo tem atuado em prevenção e combate ao fogo com milhares de brigadistas e fiscalizações, além de ameaçar com punições severas quem atear deliberadamente fogo na mata ou em áreas de cultivo.

Contudo, agora que a natureza, a sociedade e gerações futuras estão incluídas como stakeholders do ponto de vista dos negócios e da política, houve uma virada de chave. A pressão sobre o governo brasileiro será mais intensa e diversa, porque o número de novos stakeholders cresceu. Será preciso fazer mais para garantir o bem-estar das pessoas, a integridade das florestas, a preservação do meio ambiente e da biodiversidade.

A desorganização dos dados e a falta de controle sobre eles, inclusive, representam hoje um dos maiores desafios tanto para o setor público quanto para o privado. Governos e empresas lidam com grandes volumes de informação, o que, sem a devida organização, pode gerar consequências graves, como a perda de dados sensíveis, decisões estratégicas mal fundamentadas e, principalmente, a incapacidade de atender às demandas de seus stakeholders de forma eficaz.

Com o aumento da complexidade dos sistemas e a quantidade de partes interessadas envolvidas, a ausência de consultorias especializadas torna-se um fator de risco para a boa governança, expondo instituições a danos financeiros e reputacionais.

Nesse cenário, a atuação de consultorias focadas em organização e controle de dados desponta como uma necessidade imperativa. Essas empresas têm o potencial de estruturar informações de maneira coerente, facilitando a tomada de decisões e a criação de métricas de desempenho que satisfaçam as expectativas de acionistas, colaboradores e da sociedade como um todo.

Para além de prevenir danos, a organização dos dados possibilita um avanço em práticas de governança, assegurando que tanto governos quanto empresas estejam preparados para responder às pressões crescentes de seus stakeholders, internos e externos, de maneira mais transparente e responsiva.

A teoria estendida das partes interessadas tem como uma de suas fontes o pensamento do filósofo alemão Hans Jonas, que tem como foco uma ética ecológica voltada às necessidades das gerações futuras. Ele entende que o agir humano pode colocar um fim à história da humanidade sobre a terra, por isso propõe que esse agir seja pautado pelo princípio da responsabilidade para não comprometer a continuidade da vida humana. Este novo ethos quer poupar a vulnerabilidade com o dever do cuidado e da preservação. “A ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação ética.”[3]

Jonas usa o mito de Prometeu para explicar sua ética. Prometeu foi um dos primeiros deuses do Olimpo e teria criado os humanos a partir do barro, tornando-se um aliado da humanidade. Ele rouba o fogo dos deuses para dar aos humanos e foi punido por Zeus, tendo sido acorrentado a um rochedo e submetido à tortura de uma águia que devorava seu fígado, que se regenerava ao final de cada dia. Hércules teria libertado Prometeu de seu suplício, mas ele passaria a portar por toda a sua existência um anel de aço e correntes para lembrar da punição.

A humanidade detém o “fogo” e, como alerta de Jonas, pode causar a ruína do ser humano e do meio ambiente pela mera arrogância de deter o poder. Assim sendo, o papel dos stakeholders, dentro do conceito expandido, ganha mais importância, pois mais do que assombrar o poder instituído essas partes interessadas podem auxiliar a encontrar caminhos e soluções mais colaborativos para vencer o fogaréu que o Brasil não quer, nem precisa.


[1] Gomes RC, Osborne SP, Guarnieri P. Influências dos Stakeholder e desempenho do governo local: uma revisão sistemática da literatura. Disponível em:https://www.scielo.br/j/rap/a/GYTzf7kMmG7t7SryyytVtMs/?lang=pt

[2] Disponível em:https://www.ccst.inpe.br/o-futuro-climatico-da-amazonia-relatorio-de-avaliacao-cientifica-antonio-donato-nobre/

[3] Hans Jonas – O princípio da responsabilidade – tradução Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006


PATRICIA BLUMBERG – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London

YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutorando em Direito Internacional Privado pela USP, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito

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