Dentre as muitas consequências da ruidosa Operação Lava-Jato, houve uma inédita internacionalização das investigações, cuja rede de inquéritos e processos conectados se espraiaram por quase 60 países. Mas nem sempre os resultados foram satisfatórios: excessos, atropelos e violação aos direitos dos réus acabaram por anular diversos processos, como reconheceu recentemente a Suprema Corte brasileira.
No início de 2021, deparamo-nos com um desses casos de injustiça transnacional: o cliente, jovem filho de um dos envolvidos na teia internacional da Lava-Jato, acabou indevidamente implicado num inquérito criminal no Paraguai, sendo decretada sua prisão em 2018. Como o cliente mora no Rio de Janeiro e o Brasil não extradita seus nacionais, o judiciário paraguaio considerou-o foragido, incluindo-o na lista vermelha da Interpol. Com isso, mais de 190 países mantiveram o alerta de prisão e de extradição do cliente às autoridades paraguaias.
Considerando o Judiciário brasileiro mais efetivo no cumprimento de uma futura sentença criminal, o Ministério Público paraguaio remeteu o inquérito para a justiça federal do Rio de janeiro, seguindo a Convenção Interamericana de Assistência Mútua em Matéria Penal. Assim, a jurisdição paraguaia foi declinada em favor da brasileira, que passou a ser a única responsável pela apuração dos fatos e a condução do inquérito. E após ampla investigação, os promotores federais pediram o arquivamento do inquérito iniciado no Paraguai, por absoluta ausência de ilicitude praticada pelo cliente, o que foi homologado pelo juiz federal Marcelo Bretas, encerrando-se o caso em definitivo.
Surpreendentemente, o Judiciário paraguaio insurgiu-se contrariamente à remessa do inquérito à justiça brasileira, mantendo a ordem de prisão e sua inclusão na lista vermelha da Interpol, mesmo sem os autos da investigação, naquele momento já recebida, processada e arquivada pelas autoridades federais brasileiras.
A situação do cliente era evidentemente kafkiana: enquanto a justiça brasileira declarara em definitivo não ter o cliente praticado qualquer ilicitude, a justiça paraguaia mantinha decretada sua prisão, a ser executada por quase todos os Estados do planeta.
Após tentarmos várias incursões, requerimentos e recursos nas cortes paraguaias em conjunto com advogados locais, ficou claro que a situação jurídica do cliente estava irreversivelmente contaminada por influências políticas domésticas, inclusive, envolvendo um ex-presidente e as ramificações paraguaias da Lava-Jato. A solução, nesse desiderato, não viria dos tribunais paraguaios.
O direito não tolera paradoxos. À moda do gato de Schrödinger, ao mesmo tempo morto e vivo, não é factível que o cliente fosse investigado duas vezes pelo mesmo crime, sendo absolvido em uma jurisdição e mandado às grades por outra. E, neste caso, o paradoxo é muito mais nefasto, pelos efeitos globais da lista vermelha, que impede o jovem cliente de terminar sua faculdade no exterior.
Não havendo um tribunal ou órgão supranacional que regule os conflitos de jurisdição entre Brasil e Paraguai, entendemos por bem levar o paradoxo judiciário a uma instância administrativa superior, que é a Secretaria Geral da Interpol, em Lyon, na França.
A Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida pelo acrônimo Interpol (do inglês International Criminal Police Organization), fundada em 1923 e com sede Lyon, é uma agência internacional que coordena a cooperação policial e o controle do crime entre os 190 Estados membros. Dentre os curadores da Fundação Interpol – apoiadora do órgão –, encontram-se o príncipe Albert II de Mônaco, o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan de Dubai e o brasileiro Carlos Ghosn.
Nosso trabalho junto à cúpula da Interpol nos mostrou que diversos Estados utilizam a lista vermelha de forma abusiva, através da perseguição política de jornalistas e opositores, o que autoriza a revisão administrativa desses excessos pela secretaria geral.
Com o auxílio de colegas franceses, expusemos a situação sofrida pelo jovem cliente. Dentre nossos diversos fundamentos, a lista vermelha acionada pela justiça paraguaia violava os princípios de imparcialidade da Interpol: em outras palavras, o órgão reconhecia implicitamente que o mandado de prisão paraguaio prevalecia sobre a absolvição decretada pelas cortes brasileiras, ambos incidentes sobre os mesmos fatos. Além de parcial, essa posição violaria uma série de convenções internacionais de direitos humanos, como a própria Carta de ONU.
Reconhecido o conflito de jurisdições, no que foi considerado por seus integrantes o julgamento do ano, a Comissão de Controle de Arquivos da Secretaria Geral da Interpol considerou, em julho de 2021, que a inclusão na lista vermelha emitida pelas cortes paraguaias deveria ser cancelada em definitivo, não sendo factível que o cliente fosse considerado, ao mesmo tempo e pelos mesmos fatos, culpado em uma jurisdição e inocente em outra.