O Brasil já reconheceu oficialmente diante da comunidade internacional que, em seu território, ainda se pratica o trabalho escravo contemporâneo. Segundo os dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho, em 2020 foram regatados 942 trabalhadores em condições análogas à escravidão e um total de mais de 55 mil nos últimos 25 anos.
Porém, apenas 6,3% dos acusados desse crime (Artigo 149 do Código Penal) foram levados a julgamento e somente 4,2% foram condenados. A maioria dos réus foi absolvida em primeira instância (38,1%). Na Europa, o percentual de condenações pelo mesmo delito chega a 63% e na Ásia atinge 70%.¹
Esses dados perturbadores de indiferença e impunidade nos remetem à reflexão do economista Jeffrey Sachs sobre o fim do tráfico de escravos no Império Britânico: “ foram necessárias décadas, perante muito cinismo e manobras desonestas, mas, em 1807, o Império Britânico aboliu o tráfico de escravos e, em 1833, aboliu a escravatura em todas as possessões britânicas. Isso representou um golpe para os poderosos e arraigados interesses econômicos britânicos. No fim das contas, as ideias e a moralidade foram as forças crucias da mudança”.²
Onde reside nossa força de mudança, nossa moralidade para erradicar o trabalho escravo se, em janeiro deste ano, a Chacina de Unaí completou 17 anos de impunidade? Nela, perderam a vida três auditores fiscais do Ministério do Trabalho e o motorista, que foram executados a tiros, em meio à apuração de denúncia de trabalho similar à escravidão em Unaí, Minas Gerais. Entre os acusados, estava um fazendeiro e ex-prefeito da cidade, mandante confesso do crime, condenado a 65 anos, que continua solto, aguardando a execução da sentença pela Justiça.
Isso configura que o direito de propriedade de uma pessoa sobre outra ainda existe no Brasil, mesmo depois de mais de 130 anos da abolição da escravatura. O conceito de trabalho escravo está expresso na Portaria 1.293/2017, do Ministério do Trabalho, como sendo aquele “onde houver trabalho forçado, jornada exaustiva; condição degradante de trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho ou Retenção no local de trabalho em razão de: cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; manutenção de vigilância ostensiva e Apoderamento de documentos ou objetos pessoais.”³
O perfil dos escravizados contemporâneos não mudou muito daqueles registrados durante o tráfico de escravos para o Brasil . Em sua maioria, são homens negros, jovens, analfabetos funcionais, que começaram a trabalhar ainda criança, ou seja, uma parcela de excluídos e pobres na formação social brasileira. E o perfil da maioria dos que escravizam é surpreendente: empresário rural, idade média de 47 anos, do Sudeste e com ensino superior completo, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho, publicado pelo Ministério Público Federal/Procuradoria Geral da República.
Algumas iniciativas públicas funcionam como estratégias de enfrentamento à escravidão contemporânea, à impunidade e ao descaso. Uma delas é a Lista Suja do Trabalho Escravo, um cadastro de empregadores autuados por terem submetido trabalhadores à condição análoga à escravidão, criado pela Portaria 540/2004 do Ministério
do Trabalho e Emprego. Os empregadores (pessoas jurídicas e físicas ) permanecem por dois anos na lista, que serve para análise de risco para investidores e bancos públicos e privados do mercado, uma vez que a Resolução 3.876/2010 do Conselho Monetário Nacional (CVM ) 4 proíbe que empresas ou pessoas físicas incluídas na Lista Suja tenham acesso ao crédito rural.
Isso tem efeito prático e simbólico porque a maior incidência de trabalho análogo à escravidão no Brasil ocorre na área rural , não em fazendas arcaicas, mas em propriedades agrícolas modernizadas, como se a economia brasileira nunca tivesse esquecido que foi construída à base do trabalho de pessoas escravizadas. Em muitas dessas fazendas, estudos constataram que a qualidade de vida do gado é incontavelmente superior à dos trabalhadores .É o espírito do século passado da Casa-Grande, revelado por Gilberto Freyre, herdado daqueles que eram chamados os “donos do Brasil” , porque tinham mais força que vice-reis e bispos, pois podiam punir com a morte e até enterrar em seus domínios os escravos, à revelia de qualquer lei, sem temer punição. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 509) considerou a Lista Suja do Trabalho Escravo constitucional. Havia contestação que somente uma lei poderia criar tal cadastro – e não uma portaria. O relator, Ministro Marco Aurélio Mello, contudo, votou pela constitucionalidade da portaria, argumentando que a mesma está respaldada pela Lei de Acesso à Informação (12.527/2011).
Neste ano que mal começou, uma força-tarefa contra o trabalho escravo contemporâneo da Polícia Federal, Ministério Público do Trabalho e Defensoria Pública da União conseguiu resgatar mais de 100 pessoas submetidas ao trabalho análogo à escravidão, em diversas atividades. Além dos mutirões de resgate, há os casos isolados, como o de Madalena Gordiano, recentemente resgatada. Ela é uma mulher negra de 46 anos, que por 38 anos viveu na cidade de Patos de Minas (MG) na condição de escrava contemporânea, trabalhando para uma família daquela cidade, sem direitos, formalização de vínculo empregatício, sem salário, sem descanso, sem liberdade. Ela era considerada “quase da família”. Madalena bateu à porta daquela casa aos 8 anos para pedir comida e foi prometido à sua mãe que ela seria adotada. Na verdade, iniciou ainda criança nos chamados “trabalhos domésticos”, primeiro para a matriarca da família e, depois, para seu filho – um professor universitário.
Ao colocar em pauta a discussão sobre a cadeia produtiva, perguntando quem foi o responsável pelos alimentos que nos sustentam, pelas roupas que vestimos, pelo carvão que usamos no churrasco do final de semana e pelo tênis que colocamos para caminhar ou correr, damos mais transparência ao processo. As empresas brasileiras do agronegócio, por exemplo, estão começando a implantar o sistema de rastreabilidade nas cadeias de produção de carnes, soja e frutas por exigência dos países importadores, principalmente da União Europeia, que querem consumir alimentos de qualidade, de origem conhecida, que não coloquem em risco direitos humanos ou o meio ambiente.
Outro fator positivo vem sendo a adoção do compliance trabalhista por parte das empresas, que busca rever políticas e procedimentos no sentido de implantar um programa de integridade capaz de prevenir e detectar práticas lesivas, como o trabalho escravo contemporâneo. Estas ações podem configurar antídotos contra a humilhação, a violência e a exclusão que movem a roda do trabalho forçado no Brasil e no mundo, fazendo mais de 20 milhões de vítimas anuais, segundo a Organização Mundial do Trabalho.
Arquimedes dizia: dê-me um ponto de apoio e moverei o mundo, o Brasil precisa de uma alavanca civilizatória para erradicar o trabalho escravo contemporâneo e esta pode ter três pontos ou forças fundamentais: a atuação diligente da Justiça, a transparência das empresas e empresários e o fim da indiferença das instituições e da sociedade diante desse grave delito, que ajuda a sustentar o racismo estrutural.
¹Dados levantados pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais, que analisou 1.464 processos criminais e 432 ações civis para realizar um diagnóstico sobre como a Justiça brasileira reprime o trabalho escravo.
²SACHS, Jeffrey D. – A Era do Desenvolvimento Sustentável. Lisboa:Actual,2017, p.540.
³BRASIL. Ministério do Trabalho. Portaria 1.293, de 28 de dezembro de 2017. Disponível em Gov.br
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