As empresas aéreas precisaram reforçar, na pandemia, as provisões nos balanços para processos judiciais de consumidores – o que inclui remarcação de voos ou reembolso de passagens. Foram ajuizadas, nos últimos dois anos, 215,9 mil ações, em um momento de queda da demanda em comparação a 2019. Naquele ano, foram apresentados 154,7 mil processos. O levantamento é do escritório Lee, Brock e Camargo Advogados.
A pandemia, segundo advogados, gerou um passivo considerável ao setor, reflexo dos reembolsos administrativos feitos aos clientes e das ações ajuizadas pelos passageiros em todos os tribunais do país. “Como são processos de giro curto, inferior a 12 meses, muitos acabam entrando [nas demonstrações financeiras] como despesas correntes”, o advogado Solano de Camargo, do escritório Lee, Brock e Camargo Advogados.
Com base nos balanços publicados pelas três principais companhias aéreas com operações no Brasil – Azul, Gol e Latam -, a conclusão é de que houve aumento no provisionamento para processos, segundo o especialista Gabriel de Britto Silva, do escritório Jund Advogados.
No balanço da Azul, a provisão para riscos (prováveis e possíveis) relacionados a ações cíveis passou de R$ 122,4 milhões, no quarto trimestre de 2019, para R$ 148,2 milhões em 2020. No ano passado, houve uma redução, voltando a um patamar próximo de 2019: R$ 113,9 milhões.
A Gol, em seu reporte de resultados, tinha R$ 50,1 milhões no quarto trimestre de 2019. Em 2020, pulou para R$ 69,6 milhões. E no ano passado, no terceiro trimestre, estava num patamar ainda maior: R$ 360,3 milhões – não havia no balanço do quarto trimestre provisão para ações cíveis.
Na Latam, o provisionamento saiu de R$ 94,3 milhões (média PTAX) no quarto trimestre de 2019 para R$ 207,6 milhões em 2020, e caiu para R$ 91,1 milhões no quarto trimestre de 2021.
Em nota, a Latam afirma que “o aumento do provisionamento em 2020 foi um efeito direto dos massivos cancelamentos de voos provocados pela primeira onda da pandemia de covid-19”. Nos primeiros meses da crise sanitária, acrescenta, a companhia conseguiu operar somente 5% dos voos programados. A empresa reconhece ainda o “excesso de judicialização no Brasil, que aumenta consideravelmente os custos do setor”.
Com a pandemia, segundo Silva, a demanda de clientes dobrou em relação à média histórica do escritório. “Até então as causas tinham assuntos bem diversos, como extravio de bagagem, atraso ou remarcação de voo, perda de conexão e cobrança indevida”, diz. “Porém, logo no início da pandemia, a causa de pedir das demandas passou a ser uma só: cancelamento de voo.”
Decisões judiciais foram proferidas para as companhias aéreas reembolsarem valores aos clientes, sem a cobrança de multa, de acordo com o especialista Alexandre Ricco, do escritório Menezes & Ricco Advogados. “Uma empresa não quis devolver, apesar do fechamento de fronteiras e cancelamento do voo, mas o TJ-SP entendeu pela aplicação do CDC [Código de Defesa do Consumidor] e dever de restituição”, afirma (processo no 2082733-91.2020.8.26.0000).
A Lei no 14.034, de agosto de 2020, trouxe um alívio ao setor. Permitiu ao consumidor optar por receber reembolso, no prazo de até um ano, ou um crédito, sem o pagamento de eventuais penalidades contratuais. Com a atualização da
norma, essa regra ficou valendo entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2021 (Lei no 14.174).
A pandemia, porém, só veio reforçar o excesso de judicialização enfrentado pelo setor, segundo Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Em 2019, afirma ele, o setor já viu as ações saltarem quase 150% na comparação com o ano anterior, saindo de 64,6 mil processos para 154,7 mil.
“O desafio que temos não está ligado à pandemia, mas ao ambiente legal brasileiro”, diz Sanovicz. O representante do setor explica que surgiram no mercado brasileiro sites que compram o direito de passageiros em processos ou oferecem defesa, em troca de um bom percentual do valor a receber. São mais de 30, que respondem hoje por uma boa parte dos processos judiciais em tramitação no país.
Citando dados do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer), Sanovicz afirma que 98,5% das ações cíveis do setor, no mundo, tramitam no Brasil. “Apesar de termos 95% de voos pontuais e 98% de regulares.”
A estimativa é de que haja mais de R$ 1 bilhão em pedidos judiciais contra as companhias aéreas, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Sanovicz diz que, no Brasil, a cada 100 voos, aparecem 8 processos judiciais. Nos Estados Unidos, essa proporção é de apenas 0,01 para a mesma quantidade. Esses sites viraram alvo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“São empresas de tecnologia, fomentadas por fundos, que ficam promovendo propaganda nas redes sociais, com foco em consumidores que tiveram algum prejuízo, para entrar com processo”, diz o advogado Solano de Camargo. “É uma atividade ilícita promovida por empresas e não por escritórios de advocacia.”
Para o presidente da OAB, Beto Simonetti, a captação ilegal de clientes e o exercício ilegal da advocacia são inaceitáveis. “Alguns sites que se propõem a processar companhias aéreas se enquadram nessas situações ilícitas. Por isso, a OAB instaurou processos administrativos internos para analisá-los e foi à Justiça para que sejam retirados do ar e extintos.”
A OAB obteve algumas vitórias, inclusive em segunda instância, contra esses sites. Uma das decisões é do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2a Região, com sede no Rio de Janeiro. Os desembargadores da 5a Turma entenderam que as startups exercem atividades típicas da advocacia e ordenaram a retirada de anúncios sobre os serviços oferecidos (processo no 5011626-69.2019.4.02.0000).
Procurada pelo Valor, a Gol preferiu não comentar a questão. A Azul não deu retorno até o fechamento da edição.