Anualmente, os europeus são responsáveis por 10% do desmatamento global de florestas tropicais em decorrência dos produtos que importam. Ocupam o segundo lugar nesse ranking, liderado pela China.
O saldo mundial de desmatamento nos últimos 30 anos é sombrio: o planeta perdeu 420 milhões de hectares de floresta, segundo dados da ONU e, no ano passado, a perda foi de 11,1 milhões de hectares de florestas tropicais, de acordo com a Universidade de Maryland/Global Forest Watch[1], equivalente à emissão de 2,5 gigatoneladas de emissões de dióxido de carbono. Nesse ritmo, será impossível ao mundo deter a crise climática e atingir a meta de ser líquido zero de CO2 até 2050.
Em resposta a esse cenário, a União Europeia decidiu que não quer mais ser “importadora de desmatamento” e, em sessão plenária em Estrasburgo, o Parlamento Europeu votou para restringir a importação de commodities agrícolas vinculadas a regiões onde haja risco de desmatamento de florestas ou degradação ambiental. Com previsão para entrar em vigor possivelmente em 2024, a nova normativa estabelece um marco temporal: as mercadorias não devem ter sido produzidas em terras desmatadas após 31 de dezembro de 2019.
Essa nova decisão do Parlamento Europeu avança em direção a uma legislação para a consolidação do ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) e pode ser um referencial para outros países, assim como aconteceu com a GDPR, a lei de proteção de dados europeia, acatada como modelo em vários países, inclusive o Brasil.
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Em artigo, o advogado e professor Yun Ki Lee[2] destacou que os valores ESG já se encontram amparados pelos ordenamentos legais vigentes, incluindo tratados internacionais, a Constituição Federal de 1988 e leis infraconstitucionais. Contudo, a decisão europeia sedimenta um arcabouço jurídico ao cumprimento dos critérios ESG.
É possível até citar o líder indigenista Ailton Krenak, para quem “o modo de funcionamento da humanidade entrou em crise” e temos de escolher novos caminhos.
A decisão, obviamente, impacta o agronegócio brasileiro, uma vez que a União Europeia representa 15% das exportações do agronegócio nacional, puxadas pela soja (grão, farelo e óleo), café e carnes.
Os processos de rastreabilidade que passarão a ser exigidos dos produtos exportados para os países da UE terão desafios gigantescos, como na pecuária, ao visar abranger um rebanho de 214 milhões de cabeças de gado e de 2,5 milhões de propriedades agrícolas, indicando que as cadeias de suprimentos dos negócios do agro brasileiro são sustentáveis e livres de desmatamento.
O Brasil já sinaliza que deve questionar a medida junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), com o argumento de que interfere na livre concorrência no mercado internacional.
O governo brasileiro considerou a proposta europeia um “obstáculo ilegítimo ao comércio internacional” e que não terá impacto na redução do desmatamento ou degradação ambiental. O Brasil criticou também o sistema de benchmarking embutido na norma, por entender que é discriminatório ao definir um tratamento diferenciado aos países produtores.
O sistema de benchmarking adotado na nova norma europeia atribui categoria de risco – alto, padrão ou baixo – para o desmatamento. Dessa forma, a nova regra impõe mais transparência às cadeias de valor do agronegócio. Quem oferecer risco maior, fica sujeito a mais obrigações, como monitoramento por satélite em sua cadeia, e quem apresentar risco baixo, cumprirá etapas de due diligence.
Esse ranking, com dados anonimizados, ficará à disposição de investidores e consumidores e consistirá em mais uma métrica para o universo ESG, que sofre com a multiplicidade de métricas para mensurar os desempenhos sustentáveis das empresas.
A decisão de rastreamento de commodities, principalmente do Brasil, Indonésia e Costa do Marfim, pode ajudar a União Europeia a atingir sua nova meta climática para 2030: redução de 55% das suas emissões de CO2 em relação a 1990.
Isso totaliza 32 milhões de toneladas métricas de carbono por ano. Do lado brasileiro, ao ajustar as questões de desigualdade social, distribuição de renda e resgate de milhões de cidadãos da linha da pobreza, trazendo de volta sua dignidade, o Brasil poderá auxiliar na meta climática planetária e na sustentabilidade ambiental e social.
Outra questão polêmica associada à nova decisão do Parlamento Europeu está na definição do que seria a “degradação ambiental”. Pela legislação brasileira, são locais onde existem (ou existiram) “processos resultantes dos danos ao meio ambiente, pelos quais se perdem ou se reduzem algumas de suas propriedades, tais como a qualidade ou capacidade produtiva dos recursos ambientais”.[4]
A degradação ambiental sofre fortes pressões exploratórias de vetores como mineração, atividade madeireira ilegal, ampliação da fronteira agrícola e extração de petróleo etc.
O ímpeto normativo do Parlamento Europeu ligado aos valores ESG não para por aqui. Na agenda, ainda consta a proposta polêmica do Carbon Border Adjustment Mechanism[5], que consiste em um mecanismo de ajustamento para evitar a “fuga de carbono”, isto é, o deslocamento de produção intensiva de carbono para fora do continente, interferindo nas emissões globais.
Consiste na compra de certificados de carbono por parte de exportadores, “correspondente ao preço do carbono que teria sido pago se as mercadorias tivessem sido produzidas de acordo com as regras da União Europeia em matéria de fixação do preço do carbono”.
Se os produtores dos países terceiros exportadores provarem que já recolheram um imposto pelo carbono, o custo será deduzido. O CBAM deve ser implantado gradualmente a partir do próximo ano e vigorará até 2030, visando produtos específicos – ferro, alumínio, cimento, aço, fertilizantes e eletricidade.
Em reforço ao ESG ,vale lembrar que, em março, o Parlamento Europeu aprovou diretiva de due diligence obrigatória para empresas europeias ou que fazem negócios com a UE no sentido de que observem os direitos humanos e ambientais em suas cadeias de valor.
Com iniciativas vanguardistas dessa natureza, o mundo pode ter de se curvar à perspectiva legal da União Europeia, quando se tratar de normatizações voltadas aos valores ESG, se quiser que o planeta atinja a meta de impacto climático neutro até 2050.
[1] Disponível em https://environment.ec.europa.eu/publications/proposal-regulation-deforestation-free-products_en
[2] LEE, Yun Ki. Marcos Legais. JOTA, 2022. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/praticas-esg/marcos-legais-do-esg-18042022
[3] Disponível em https://mapbiomas.org/
[4] BRASIL. Decreto n. 97.632 de 10 de abril de 1989. Dispõe sobre a regulamentação do Artigo 2°, inciso VIII, da Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-97632-10-abril-1989-448270-publicacaooriginal-1-pe.html
[5] Disponível em https://taxation-customs.ec.europa.eu/green-taxation-0/carbon-border-adjustment-mechanism_en
FABIO RIVELLI – Advogado, sócio da LBCA, mestrando na PUC-SP e presidente da Comissão de Inovação, Gestão e Tecnologia da OAB-Guarulhos
SANTAMARIA NOGUEIRA SILVEIRA – Jornalista, gerente de conteúdo da LBCA, doutora pela ECA-USP e mestre pela FFLCH-USP