Quando em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável entre pessoas da comunidade LGBT, o Brasil fez história ao se tornar o primeiro país do mundo a reconhecer judicialmente esse direito. Em retribuição, o país recebeu da ONU o Certificado MoWBrasill 2018, sendo o julgamento declarado pela UNESCO patrimônio documental da humanidade.
O julgamento do STF decidiu ao mesmo tempo duas ações. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277,impetrada pela Procuradoria Geral da República (PGR), questionava a violação dos princípios constitucionais da igualdade, liberdade e da dignidade da pessoa humana no tratamento dado às uniões homoafetivas; já a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, proposta pelo Estado do Rio de Janeiro, buscava o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
Em seu voto, o relator de ambas as ações, o então ministro Ayres Brito, utilizou em seu voto o termo “homoafetividade” ao identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, embora o vocábulo não constasse nos dicionários da língua portuguesa. Nesse contexto, excluiu qualquer significado que impedisse “… o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de família”. Assim, o relator reconheceu que a união homoafetiva, no contexto constitucional brasileiro, deveria ser considerada juridicamente válida “segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”.
E nos últimos tempos, a vista da omissão do Poder Legislativo, muitas questões socialmente importantes têm sido judicializadas, como ocorreu com os direitos da comunidade LGBT.
O ministro Ricardo Lewandowski, ao proferir seu voto naquele julgamento histórico, pontuou a omissão do Congresso Nacional em regulamentar a matéria: “o que se pretende, ao empregar-se o instrumento metodológico da integração, não é, à evidência, substituir a vontade do constituinte por outra arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência de um vácuo normativo, procurar reger uma realidade social superveniente a essa vontade, ainda que de forma provisória, ou seja, até que o parlamento lhe dê o adequado tratamento legislativo”.
Em outras palavras, reconheceu o STF que o Brasil vive em um contínuo cabo de guerra, tendo nas pontas opostas os Poderes Judiciário e o Legislativo. Enquanto o primeiro preenche os tais “vácuos normativos” de que tratou o ministro Lewandowski com decisões judiciais, o segundo permanece em estado letárgico, acusando o primeiro de usurpar sua prerrogativa de legislar.
De fato, o conceito de família binária (homem e mulher) continua solidamente presente no entendimento conservador de grande parte dos parlamentares brasileiros, o que acaba por perenizar diversos vácuos legislativos que pairam sobre inúmeros direitos não reconhecidos da comunidade LGBT. A própria discussão do assunto sofre forte resistência de parlamentares, que se utilizam de discursos moralistas e impedem qualquer avanço, principalmente face ao reconhecimento da família homoafetiva. Como exemplo, mudanças no Código Civil envolvendo a matéria são sistematicamente proteladas no Congresso.
Mesmo após o julgamento do STF em 2011, nem todos os registradores públicos aceitavam formalizar as uniões homoafetivas, sendo necessário ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitir a Resolução nº 175, determinando a obrigatoriedade do registro. Superados preconceitos, nesse período de dez anos, o Brasil registrou mais de 52 mil escrituras de uniões estáveis homoafetivas. A partir de então, a comunidade LGBT que formalizou seus casamentos passou a ter os mesmos direitos das demais famílias brasileiras.
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A evolução do conceito de família é muito importante para salvaguardar as conquistas da comunidade LGBTQIA+, na medida em que tramitam no Congresso diversos projetos que negam o pluralismo das instituições familiares, o que pode gerar controvérsias e retrocessos. Como exemplo, de tempos em tempos retornam ao Congresso debates sobre a “cura gay” ou terapias sem fundamento científico, repudiadas pela Resolução nº 1/1990 do Conselho Federal de Psicologia, que reconheceu a conduta homoafetiva como uma expressão da sexualidade humana.
A partir da posição do STF, as famílias LGBTQIA+ passaram a ver reconhecidos outros direitos civis, como o de compartilhar patrimônio comum, fazer jus a herança, ser dependentes de plano de saúde, obter benefícios previdenciários, contrair sobrenomes, adotar filhos como casal, etc.
Além dessas, outras conquistas se somaram ao casamento homoafetivo ao longo da última década, permitindo que as pessoas transgêneras alterassem o prenome e o gênero de nascimento no registro civil; o crime de homotransfobia fosse comparado ao crime de racismo; a permissão para que indivíduos da população LGBT doasse sangue.
Especificamente neste último caso, ao afastar normas do Ministério da Saúde, da ANVISA e até da Organização Mundial da Saúde (OMS), o STF deixou explícito o quanto uma pessoa LGBTQIA+ pode ser ferida “em sua liberdade de realizar ato humanitário de doar sangue”, ao ser barrada por sua orientação e não por seu comportamento sexual de risco”. Segundo o acórdão, “é de corroer a alma, a dignidade da pessoa humana; não só de quem doa, mas também do recipiente, dos profissionais da saúde e de cada um de nós, por razão já superada”.
A despeito da função reformadora do Judiciário brasileiro, o amor entre pares homoafetivos continua estigmatizado por preconceitos e incompreensões, principalmente daqueles que deveriam zelar pelo avanço dos direitos e garantias individuais, que são os representantes do povo no Congresso Nacional. Mesmo assim, a trancos e solavancos, os direitos vão se consolidando e a sociedade continua evoluindo, ao mesmo tempo em que o obscurantismo vai sendo superado pela compreensão, pela tolerância e pela razão.
A instância judiciária máxima do Brasil reconheceu e assegurou o direito constitucional de que todos os brasileiros podem constituir família, independentemente de sua orientação sexual ou da identidade de gênero de seus integrantes, aliás, como um componente fundamental do rol de direitos humanos gravados em cláusula pétrea de nossa Constituição Federal. Como afirmou o ministro Ayres Britto em seu voto histórico: “tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido. A ausência de lei não é ausência de direito, até porque o direito é maior do que a lei”. Em complemento, podemos dizer que a realidade das famílias LGPDQIA+ é hoje maior do que as omissões do Congresso Nacional.
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